Agostinho da Silva (...) compreendeu algo de simples e verdadeiro: a sociedade que criámos fez de nós exércitos prontos para a guerra: a guerra da competição, a guerra da economia que mata, a guerra do lucro e do dinheiro, da fama e da vida adulta.”
Portugal vem de ter afirmado a existência de uma Europa que duas vezes se perdeu de si própria (…), a sua força de salvação virá de ter incluído e, seu brasão as chagas de Cristo, não pintando-as apenas, mas consubstanciando-as em gente” (p.20). E segue-se a interpretação dessas quinas simbólicas.
Para a explicação dos heterónimos, Agostinho da Silva segue a tábua de Pessoa: Reis é o latinista e semi-helenista cujo estilo – “o talhe da estrofe” – nasce da compreensão íntima do que foi o helenismo. Pessoa-Reis, segundo Agostinho, sendo um jesuíta, um médico, faz da poesia a linguagem curativa da alma humana. Reis escreve pela mão de Pessoa a decadência da cultura antiga. O seu estoicismo e cepticismo têm que ver com a medicina: como médico desconfia dos poderes do homem sobre a vida; como médico “tem a paciência da análise e a paciência humana”. Uma filosofia prática e moral, não um teórico puro, assim lê Reis o autor de Um Fernando Pessoa. Uma tese importante ao ler o autor das odes: Reis entende que a vida é o espaço-tempo em que devemos pôr tudo quanto somos no mínimo que fazemos. Outra: “A nossa obrigação é a de pôr flores mesmo nas horas mais difíceis ou naquelas que sabemos mais inúteis e perdidas, exactamente como a sentinela põe a flor da sua dignidade no tumulto da erupção, e o cortesão põe a flor da sua ironia na brutalidade da ordem de suicídio” (p.47). Só assim, imperturbáveis, escreve Agostinho, “os deuses nos poderão aceitar como de algum modo dignos de sua companhia ou, pelo menos, de sua imperturbada serenidade, quando virem que nos não agitamos em vão nem clamamos contra uma sorte que nem eles próprios poderão modificar.” (p.48).
Por estes dias de reflexão, de meditação, de horas decisivas, dei por mim a ler Ricardo Reis depois de lido Agostinho da Silva. As páginas sobre o cantor de Lídia (significa liberdade, este nome), são (deixem-me usar esta palavra antiga) um “bálsamo”. É que – e o mesmo acontece com as páginas dedicadas a Caeiro e a Campos – Agostinho da Silva mostra como a existência através da leitura se torna mais terna, isto é, mais aceitável. Ao escrever sobre Caeiro (depois da pristina descrição física que revela já uma disposição mental), há páginas esplendorosamente belas. Escolho esta passagem: “Se os deuses são só corpo, será então o corpo e não a nossa alma ou espírito o que existe de imortal; o que estará certo em nós é, portanto, aproximarmo-nos o mais possível da estabilidade, da segurança, da pureza, diríamos da virgindade do corpo (…)” (p.58).
Agostinho da Silva é, a vários títulos, indispensável quando falamos, hoje, de formas de cativar para a leitura os mais novos e mesmo os da minha geração (penso nos políticos que não lêem, que nunca leram e serão, então, sem alma e espírito, pouco amados pelos deuses que lhes deram vidas fáceis…). Ou mesmo os mais velhos. Ler e viver, pois. Dei por mim a imaginar, neste ano de 500 anos de Camões, 50 de 25 de Abril e 100 de Mário Soares; dei por mim a imaginar (ia a insónia já solta) como seria uma aula em que, lendo, fazendo frente ao ruído e à incivilidade da maioria dos alunos, um professor lesse um trecho em voz alta deste magnífico livrinho. Estranhariam? Rir-se-iam? Olhar-se-iam com o olhar típico de quem não entende e, por não entender, acha que o outro é parvo? Talvez. Lembro-me bem de alguns entrevistadores que, naquele programa, nas Conversas Vadias, não compreenderam nunca que o professor Agostinho da Silva era quem, no fundo, podia rir-se do cinismo de alguns ou da perplexidade de outros ao entrevistarem-no. Estavam, de facto, perante alguém que jamais tinha lido, ou viria a ler, Bret Easton Elis, ou jamais viria a citar Lipovetsky. Agostinho da Silva pertencia a outra estirpe de intelectuais: esses bem próximos da vida concreta das pessoas e que, na polis, dando a ler o seu Fernando Pessoa, compreendeu algo de simples e verdadeiro: a sociedade que criámos fez de nós exércitos prontos para a guerra: a guerra da competição, a guerra da economia que mata, a guerra do lucro e do dinheiro, da fama e da vida adulta. Agostinho da Silva é muito necessário no nosso tempo de tanta adulteração. Este livro, no fundo, pede reedição urgente (se acaso já existe, erro meu e escreverei para repor alguma justiça). “Neste mundo de corpos, de coisas, de sensações e de perfeito negar-se ao pensamento, até os sonhos são nítidos, tão ordenados, tão contempláveis em sossego como uma fotografia” (p.59). Fala-se já desse Cristo que desce à Terra no oitavo andamento de Guardador de Rebanhos. Explico: Agostinho da Silva fala-nos desse “Menino Jesus” verdadeiro, o único ser cuja natureza é compatível com a dele, Caeiro, porque, ensina o poeta a olhar para as coisas, recusa a corrupção da cidade, vem viver para o campo onde vive Caeiro. Mas de que falo? Dum livro! Melhor: dum testemunho de vida de alguém de quem nos devíamos lembrar e ler: Agostinho da Silva ou o ensaísmo num patamar vital, claro nos princípios, seguro na escrita, sensível na inteligência. Não estamos todos precisados desses três milagres?
Sim, este Um Fernando Pessoa foi escrito tendo a noção exacta da hora que o país atravessava: não só os 100 anos de Pessoa, mas a hora europeia em que, para usar uma expressão que fez eco, nós tínhamos “A Europa connosco”. É talvez por aí que este livro pode ser hoje descoberto. Agostinho da Silva, ao ler Pessoa logo nos esclarece quanto a um facto terrível: o criador dos heterónimos, facilmente, poderia ter escolhido a Inglaterra para ser o Conrad futuro.
O