A cegueira dos dias
Há uns meses, assisti a uma conversa sobre formas de conseguir melhores condições de vida dos trabalhadores das aplicações informáticas. Um trabalhador tinha organizado uma lista no WhatsApp, com muitas centenas de trabalhadores dos aplicativos, para discutirem a situação de todos, auxiliarem-se e ganharem mais. Na prática, ele fazia uma espécie de atividade sindical, embora tivesse consciência de que a ideia não teria muita aceitação junto dos seus camaradas de trabalho. “Se disser que estou a organizar um sindicato, ficam aqui na lista apenas uma meia-dúzia. Os meus colegas estão convencidos de que não são trabalhadores, veem-se como empreendedores”, disse-me.
Temos dezenas de milhares de pessoas a trabalharem para aplicações. As gigantescas empresas do setor convenceram-nas que são, cada um deles, um indivíduo diferente que decidiu livremente usar umas aplicações para ganhar a vida. Deixam-se explorar e julgam que são empresários de si próprios, quando na realidade são escravos mal pagos de um sistema muito lucrativo.
E a situação piora todos os anos, aquilo que antigamente ganhavam em menos de meia-dúzia de horas, hoje custa-lhes mais de 12 horas. O dinheiro que ganham é comprimido pelo número cada vez maior de pessoas que usam os aplicativos para sobreviver, a que se junta a diminuição dos preços imposta pelas empresas dos aplicativos para conseguirem mais gente a recorrer aos seus serviços. Na semana passada, um motorista da Bolt dizia-me: “Quem manda localmente apercebeu-se de que o sistema de transportes português tem muitas falhas nos arredores e subúrbios e, se baixarem ligeiramente os preços, têm centenas de milhares de pessoas mais pobres que os passam a usar, mesmo se quem conduz fique a ganhar muito pouco pelo serviço.”
“O poder que mantinha o sistema na sociedade disciplinar e industrial era repressivo”, escreve o filósofo Byung- Chul Han, no seu livro Capitalismo e Pulsão de Morte. Para ele, a visibilidade da coerção tornava os protestos coletivos possíveis: “Há um oponente concreto, um inimigo visível, contra o qual se dirige a resistência.”
O capitalismo contemporâneo veio baralhar esta clareza. “O neoliberalismo transforma o trabalhador oprimido num empresário livre, empresário de si mesmo. (…) Aqueles que hoje não têm sucesso culpam-se a si próprios e sentem-se envergonhados. Problematizam-se a si mesmo e não à sociedade”, refere o pensador sul-coreano.
Há dezenas de milhares de pessoas a trabalharem em salas de call center e muitos a trabalharem com aplicativos, no entanto, a grande maioria dessas pessoas não reconhece que a exploração do seu trabalho cria uma identidade específica. Esta hegemonia que apaga as classes sociais foi construída e não está inscrita nas pedras.
Numa entrevista dada em 1981 ao Sunday Times, Margaret Thatcher afirmava claramente as suas intenções. Para uma das governantes que estabeleceu o poder do neoliberalismo, não havia sociedade, apenas indivíduos e família: “A política dos últimos 30 anos foi permanentemente e integralmente orientada para um modelo de sociedade coletivista, e isso irritou-me sempre muito. As pessoas acabaram por esquecer que só os indivíduos importam. (…) Mudar a economia é a forma de mudar esta forma de ver as coisas. (…) A economia é o método, o objetivo é mudar o coração e a alma.”
A operação ideológica de eliminar a sociedade e as suas relações de força e poder do nosso ângulo de visão permite que se transfira para o indivíduo todos os problemas existentes. Passamos a não ter injustiças sociais e económicas e passamos a ter apenas problemas individuais que dependem do comportamento individual ou da consulta do livro de autoajuda certo para se conseguir uma vida boa e a felicidade.
“A indústria da felicidade fez a sua apropriação e prospera e contribui de maneira significativa a incorporar a ideia de que a riqueza e a pobreza, o sucesso e o falhanço, a saúde e a doença seriam de nossa responsabilidade. Isso legitima igualmente a ideia de que não há problemas estruturais apenas deficiências psicológicas”, recordam Edgar Cabanas e Eva Illouz, no livro Happycratie, Como a Indústria da Felicidade Tomou Conta das Nossas Vidas.
A resolução dos problemas das nossas sociedades exige que as pessoas percebam que fazem parte dessa sociedade e que só em conjunto se podem resolver estas injustiças. Perceber a sociedade é saber que há interesses contraditórios e que para resolver o facto de Portugal estar cada vez mais desigual – 42% da riqueza do país está concentrada em apenas 5% da população – é necessário que os outros 95% percebam que são 95%. E provavelmente que a maioria de nós é trabalhador e não colaborador ou empreendedor.
Perceber a sociedade é saber que há interesses contraditórios e que para resolver o facto de Portugal estar cada vez mais desigual – 42% da riqueza está concentrada em 5% da população – é necessário que os outros 95% percebam que são 95%.