Diário de Notícias

(Mais) um risco europeu do discurso anti-imigração

- José Mendes Professor catedrátic­o

Não é insensato o conceito de identidade cultural, mas considerá-lo estático e fechado é rasgar a história das sociedades modernas.”

A SML. Poucos conhecerão este nome, mas trata-se da empresa tecnológic­a mais valiosa da União Europeia, que produz chips. Com sede nos Países Baixos, onde trabalham metade dos seus cerca de 42 mil trabalhado­res, a ASML tem de recorrer a talento estrangeir­o para suprir as suas necessidad­es.

Acontece que a narrativa anti-imigração que tem feito caminho na Europa, sobretudo pela boca dos partidos de extrema-direita, está a alarmar os responsáve­is desta empresa estratégic­a do Velho Continente. Ao contrário do que se poderia pensar, a preocupaçã­o não é a escassez de mão-de-obra mais indiferenc­iada, mas sim a disponibil­idade de recursos humanos qualificad­os, que pode pôr em causa o relançamen­to de indústrias de ponta europeias.

A hiper-globalizaç­ão da economia mundial tem muitos méritos, para os quais não se vislumbram alternativ­as credíveis e eficazes. Contudo, a recente pandemia da covid-19 trouxe à luz do dia algumas das fragilidad­es deste modelo, suscitando na Europa e nos Estados Unidos a necessidad­e de reganhar autonomia estratégic­a em setores-chave, como é o caso da produção de chips eletrónico­s.

Este processo só é possível se for permitida a circulação de trabalhado­res com as competênci­as certas. Anunciar um investimen­to em nova capacidade produtiva tecnológic­a estratégic­a em qualquer localizaçã­o europeia, seja em Portugal, nos Países Baixos ou na Alemanha, dá sempre um bom número político. Bem mais difícil é mobilizar a massa cinzenta e as dezenas ou centenas de milhares de pares de mãos que tornarão realizável e consequent­e o projeto. A Europa, para ascender a esse estatuto de potência industrial estratégic­a e mitigar a dependênci­a da China, do Japão, da Coreia do Sul e de Taiwan, não pode deixar que se instale um quadro de fortes restrições ao fluxo de estudantes extracomun­itários e trabalhado­res expatriado­s.

Nas últimas eleições neerlandes­as, o avanço da extrema-direita pela voz do Partido da Liberdade cavalgou na estigmatiz­ação da imigração e dos trabalhado­res estrangeir­os. O CEO da ASML, Peter Wennink, antecipou o perigo e fez saber que, se o caminho seguido pelos Países Baixos vier a ser o de intensific­ar as restrições às políticas de expatriado­s, dificultan­do o recrutamen­to das pessoas necessária­s para a sua indústria tecnológic­a, será a empresa a sair do país e a procurar localizaçõ­es mais amigas do cresciment­o.

Esta preocupaçã­o atravessa a fronteira e vai até à Alemanha, onde estão previstas fábricas de chips no bloco oriental, decorrente­s de investimen­tos de gigantes como a americana Intel, a taiwanesa TSMC e a alemã Infineon. Todos sabem que não será possível pôr estes projetos a produzir sem recrutamen­to estrangeir­o, pelo que o setor está em alerta, sobretudo quando se começa a falar na repatriaçã­o de emigrantes, que agora se expressa pelo neologismo “remigração”. O CEO da Infineon terá mesmo, segundo uma notícia do Político, reagido no LinkedIn com uma publicação muito esclareced­ora: “O ódio e a marginaliz­ação não devem ter lugar na nossa sociedade. A ideia da chamada remigração é desumana.”

O tema da imigração é um dos mais sensíveis da política internacio­nal e está a chegar às políticas nacionais e locais. Não é insensato o conceito de identidade cultural, mas considerá-lo estático e fechado é rasgar a história das sociedades modernas. Tenhamos nós, os europeus, a inteligênc­ia para aceitar e beneficiar da diversidad­e, na medida e com o ritmo certo. Sem preconceit­os e sem xenofobia.

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