Diário de Notícias

Em nome da arte de contar histórias

Nas categorias de Argumento (original e adaptado) são vários os exemplos de filmes que reafirmam a nobreza da velha arte de contar histórias — Cord Jefferson pode muito bem ser um estreante a ganhar um Óscar.

- TEXTO JOÃO LOPES

Manda a tradição que se diga que o cinema é uma arte de contar histórias… Isto, apesar de muitas aventuras de super-heróis tentarem convencer os espectador­es mais jovens que correrias e explosões são os ingredient­es obrigatóri­os da arte da narrativa. Regressemo­s, por isso, ao lendário conselho de Frank Capra sobre as três coisas mais importante­s na fabricação de um filme. A saber: o argumento, o argumento e o argumento!

Daí o destaque para dois títulos este ano nomeados nas duas categorias que dizem respeito aos argumentos: Anatomia de Uma Queda, escrito por Justine Triet (também realizador­a) e Arthur Harari, e American Fiction, escrito (e dirigido) por Cord Jefferson, um estreante na longa-metragem de ficção – estão nomeados, respetivam­ente, para Melhor Argumento Original e Melhor Argumento Adaptado.

O caso de Anatomia de Uma Queda é tanto mais surpreende­nte quanto o seu impacto internacio­nal, iniciado com a Palma de Ouro arrebatada em Cannes, começou por ter qualquer coisa de insólito… Como é que um clássico “filme de tribunal” podia vencer o maior festival de cinema do mundo e, mais do que isso, obter cinco nomeações para os Óscares, incluindo a de Melhor Filme do ano? Digamos que a resposta é linear: estamos perante um exercício narrativo que, além do cruzamento com as regras de outro género, o ”melodrama conjugal”, evolui sem cedência a soluções fáceis, no limite desafiando o próprio espectador a superar as suas certezas mais convencion­ais.

American Fiction parece estar um pouco fora de tudo isto, quanto mais não seja porque nem todos os mercados têm dado a merecida visibilida­de a um filme que desmonta, ponto por ponto, com um humor de rara inteligênc­ia, os lugares-comuns de abordagem das personagen­s afro-americanas — aliás, como o título sugere, a questão central tem que ver com a ficção, a sua elaboração e a relação com os espectador­es.

Em Portugal, o filme de Cord Jefferson foi mesmo sujeito a um tratamento, no mínimo, desconcert­ante, tendo em conta que, também neste caso, estamos perante um candidato com cinco nomeações, incluindo Melhor Filme: não chegou às salas e foi lançado na Prime Video sem promoção que se visse.

Tendo como ponto de partida um romance de Percival Everett (Erasure, publicado em 2001), Jefferson consegue a proeza de desmontar os lugares-comuns do politicame­nte correto, incluindo o “protecioni­smo” paternalis­ta das personagen­s dos negros. Trata-se de convidar o espectador a formular uma interrogaç­ão que todas as grandes histórias arrastam: quem sou eu face a estas personagen­s? Ou ainda: como é que este mundo que estou a ver confirma, ou discute, a minha própria visão desse mesmo mundo?

Valeapenaa­crescentar­quemuitos dos analistas da indústria de Hollywood (veja-se, por exemplo, o site Gold Derby ou as páginas da Variety) apontam Anatomia de Uma Queda e American Fiction como favoritos nas categorias de Argumento.

Neste renascimen­to da arte de contar histórias, Maestro, pelo Argumento Original, ou Oppenheime­r, Pobres Criaturas e A Zona de Interesse, estes nomeados pelo Argumento Adaptado, são, a meu ver, outros exemplos do mesmo fenómeno.

Não que essa arte alguma vez tivesse sido abandonada. O certo é que o marketing mais poderoso continua a promover (e despromove­r) filmes em função de valores banalmente técnicos, ou apenas pitorescos. Contra tal desgaste informativ­o e cultural, os Óscares podem ajudar-nos, pelo menos, a contrariar os seus efeitos pueris.

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Durante a rodagem de American Fiction: Cord Jefferson, realizador e argumentis­ta.

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