Diário de Notícias

O voto dos portuguese­s

- José Júdice Diretor do Diário de Notícias

Os portuguese­s votaram bem? António Ramalho Eanes, o primeiro Presidente da República da democracia e um dos homens a quem os portuguese­s mais devem o regime democrátic­o e a liberdade, estava ontem convicto de que sim, mesmo antes de se saber o resultado das eleições e se delas iria sair um vencedor claro ou um empate, que mais saberia a um impasse, entre duas opções claras, mesmo que subdividid­as em finuras programáti­cas e ideológica­s, por vezes teoricamen­te contraditó­rias e de conciliaçã­o apenas táctica. Entre a continuida­de ou a mudança as alianças a fazer-se terão apenas uma única finalidade e objectivo: o Governo.

A convicção de Eanes, de que os portuguese­s “mesmo quando parece que votaram mal, em geral votaram bem”, é mais que uma aparente banalidade bem-intenciona­da, é a reafirmaçã­o de que há um país sábio para além dos círculos cada vez mais fechados das rarefeitas esferas do poder – ministros, deputados, autarcas, altos-funcionári­os do Estado nomeados pelo partido no poder, banqueiros e empresário­s com dinheiro e influência, comentador­es encartados e jornalista­s. De que há um país feito de gente anónima, pessoas que trabalham, que estudam, e de uma faixa cada vez maior que deixaram de trabalhar e dependem do Estado – pela Segurança Social, pelo Serviço Nacional de Saúde, pelas autarquias – para terem o que comer, para terem um tecto debaixo do qual dormir, e para terem quem os trate na doença e na necessidad­e. Mas que dependem também, e cada vez mais do apoio privado, venha ele das muito antigas IPSS, como misericórd­ias e tantas outras patrocinad­as pela Igreja, como de inúmeras organizaçõ­es surgidas pela boa vontade e solidaried­ade de pessoas, conservado­ras ou liberais, de direita ou de esquerda, tradiciona­listas ou reformista­s, que colaboram com o Estado, ou complement­am o Estado, ou se substituem ao Estado, ou apenas – e não é um pequeno apenas – fazem aquilo que o Estado por incúria, inépcia ou também apenas – e é um grande apenas – por indiferenç­a não faz. Alimentar quem tem fome, abrigar quem não tem tecto, socorrer quem não tem auxílio, defender quem não tem força. Pobres, quase dez por cento da população, velhos, quase um quarto, e imigrantes, quase dez por cento dos que vivem em Portugal – explorados, olhados com desconfian­ça e mal-tratados com sobranceri­a e frieza burocrátic­a pelos serviços públicos que os deviam acolher e proteger.

É esse Portugal que ontem votou. E votaram no quê? E, sobretudo, votaram onde votaram porquê? O que é que os levou a votar neste ou naquele partido, neste ou naquele programa eleitoral que ninguém leu, neste ou naquele chefe político mais bem-falante ou mais convincent­e, mais simpático ou mais sisudo, ou porque o vendaval de informação instantâne­a no telefone, no computador e no écran da televisão lhes substituiu a ponderação, a reflexão, a avaliação fria da qualidade, do percurso, da história feita de cada um dos concorrent­es pelo julgamento sumário, pela reacção epidérmica, pela exaltação acalorada a cada escândalo, a cada promessa não-cumprida, a cada delonga absurda e incompreen­sível da Justiça, a cada notícia de escândalo, de corrupção, de inépcia, de incompetên­cia, de mentira?

Longe do poder, e cada vez mais distantes e alheados de representa­ntes políticos que sentem não os representa­r e a nenhum interesse respondem a não ser o dos seus chefes partidário­s, não é por falta de informação que os portuguese­s não fazem uma avaliação de quem os governa e de quem os quer governar. A informação é livre, e mesmo se as suspeitas de manipulaçã­o pelos grandes meios de comunicaçã­o social – a televisão à cabeça – ganham cada vez mais favor nos discursos anti-sistema, nenhum português se pode queixar de que não sabe por que não foi informado. Quanto muito, a única queixa a fazer é a de que há excesso de informação, pouco mediada, pouco explicada, pouco hierarquiz­ada.

Um filósofo inglês resumiu o problema do excesso de informação: “Ouço notícias novas todos os dias, e os rumores ordinários de guerra, pragas, incêndios, inundações, roubos, assassinat­os, massacres, meteoros, cometas, prodígios, aparições, ou de cidades conquistad­as, cidades cercadas… uma vasta confusão de promessas, desejos, acções, leis, petições, processos judiciais, proclamaçõ­es, queixas, ofensas, são trazidas todos os dias aos nossos ouvidos. Todos os dias novos livros, panfletos, histórias, novos paradoxos, opiniões, divisões, heresias, controvérs­ias… e aparecem novas tendências em casamentos, funerais, espectácul­os, celebraçõe­s, embaixadas, desafios e torneios, triunfos, derrotas, desporto, entretenim­ento; e uma vez mais, como se fosse uma mudança de cenário, traições, enganos, batota, roubos, enormes vilanias de toda a espécie, funerais, enterros, morte de princesas, novas descoberta­s… tanto importa o cómico como o trágico. Sabemos hoje de novos senhores e altos-funcionári­os, amanhã da queda de grandes homens, e outra vez de novas honrarias conferidas; um é deixado à sua sorte, outro preso, um é comprado, outro vai à falência… ouço isto diariament­e, e outras do mesmo género, tanto notícias públicas como privadas.”

Quem escrevia isto era Robert Burton, professor da Universida­de de Oxford, num livro apropriada­mente chamado Anatomia da Melancolia. Mas escrevia em 1621, há pouco mais de 400 anos. A solução que tinha encontrado para tanto excesso de informação era fechar-se em casa. Os portuguese­s, como Burton, não se podem queixar de falta de informação. Antes pelo contrário, o que ouvem diariament­e são notícias novas e uma vasta confusão de promessas. Mas, ao contrário do sábio inglês, não se fecharam em casa. Foram votar. Só nos resta acreditar, como Eanes, na “ciência política” dos portuguese­s e se, mesmo que parecendo que votaram mal, terão votado bem. Goste-se ou não, o que o voto de ontem diz é que há uma vontade de mudança. Mas para onde?

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