O voto dos portugueses
Os portugueses votaram bem? António Ramalho Eanes, o primeiro Presidente da República da democracia e um dos homens a quem os portugueses mais devem o regime democrático e a liberdade, estava ontem convicto de que sim, mesmo antes de se saber o resultado das eleições e se delas iria sair um vencedor claro ou um empate, que mais saberia a um impasse, entre duas opções claras, mesmo que subdivididas em finuras programáticas e ideológicas, por vezes teoricamente contraditórias e de conciliação apenas táctica. Entre a continuidade ou a mudança as alianças a fazer-se terão apenas uma única finalidade e objectivo: o Governo.
A convicção de Eanes, de que os portugueses “mesmo quando parece que votaram mal, em geral votaram bem”, é mais que uma aparente banalidade bem-intencionada, é a reafirmação de que há um país sábio para além dos círculos cada vez mais fechados das rarefeitas esferas do poder – ministros, deputados, autarcas, altos-funcionários do Estado nomeados pelo partido no poder, banqueiros e empresários com dinheiro e influência, comentadores encartados e jornalistas. De que há um país feito de gente anónima, pessoas que trabalham, que estudam, e de uma faixa cada vez maior que deixaram de trabalhar e dependem do Estado – pela Segurança Social, pelo Serviço Nacional de Saúde, pelas autarquias – para terem o que comer, para terem um tecto debaixo do qual dormir, e para terem quem os trate na doença e na necessidade. Mas que dependem também, e cada vez mais do apoio privado, venha ele das muito antigas IPSS, como misericórdias e tantas outras patrocinadas pela Igreja, como de inúmeras organizações surgidas pela boa vontade e solidariedade de pessoas, conservadoras ou liberais, de direita ou de esquerda, tradicionalistas ou reformistas, que colaboram com o Estado, ou complementam o Estado, ou se substituem ao Estado, ou apenas – e não é um pequeno apenas – fazem aquilo que o Estado por incúria, inépcia ou também apenas – e é um grande apenas – por indiferença não faz. Alimentar quem tem fome, abrigar quem não tem tecto, socorrer quem não tem auxílio, defender quem não tem força. Pobres, quase dez por cento da população, velhos, quase um quarto, e imigrantes, quase dez por cento dos que vivem em Portugal – explorados, olhados com desconfiança e mal-tratados com sobranceria e frieza burocrática pelos serviços públicos que os deviam acolher e proteger.
É esse Portugal que ontem votou. E votaram no quê? E, sobretudo, votaram onde votaram porquê? O que é que os levou a votar neste ou naquele partido, neste ou naquele programa eleitoral que ninguém leu, neste ou naquele chefe político mais bem-falante ou mais convincente, mais simpático ou mais sisudo, ou porque o vendaval de informação instantânea no telefone, no computador e no écran da televisão lhes substituiu a ponderação, a reflexão, a avaliação fria da qualidade, do percurso, da história feita de cada um dos concorrentes pelo julgamento sumário, pela reacção epidérmica, pela exaltação acalorada a cada escândalo, a cada promessa não-cumprida, a cada delonga absurda e incompreensível da Justiça, a cada notícia de escândalo, de corrupção, de inépcia, de incompetência, de mentira?
Longe do poder, e cada vez mais distantes e alheados de representantes políticos que sentem não os representar e a nenhum interesse respondem a não ser o dos seus chefes partidários, não é por falta de informação que os portugueses não fazem uma avaliação de quem os governa e de quem os quer governar. A informação é livre, e mesmo se as suspeitas de manipulação pelos grandes meios de comunicação social – a televisão à cabeça – ganham cada vez mais favor nos discursos anti-sistema, nenhum português se pode queixar de que não sabe por que não foi informado. Quanto muito, a única queixa a fazer é a de que há excesso de informação, pouco mediada, pouco explicada, pouco hierarquizada.
Um filósofo inglês resumiu o problema do excesso de informação: “Ouço notícias novas todos os dias, e os rumores ordinários de guerra, pragas, incêndios, inundações, roubos, assassinatos, massacres, meteoros, cometas, prodígios, aparições, ou de cidades conquistadas, cidades cercadas… uma vasta confusão de promessas, desejos, acções, leis, petições, processos judiciais, proclamações, queixas, ofensas, são trazidas todos os dias aos nossos ouvidos. Todos os dias novos livros, panfletos, histórias, novos paradoxos, opiniões, divisões, heresias, controvérsias… e aparecem novas tendências em casamentos, funerais, espectáculos, celebrações, embaixadas, desafios e torneios, triunfos, derrotas, desporto, entretenimento; e uma vez mais, como se fosse uma mudança de cenário, traições, enganos, batota, roubos, enormes vilanias de toda a espécie, funerais, enterros, morte de princesas, novas descobertas… tanto importa o cómico como o trágico. Sabemos hoje de novos senhores e altos-funcionários, amanhã da queda de grandes homens, e outra vez de novas honrarias conferidas; um é deixado à sua sorte, outro preso, um é comprado, outro vai à falência… ouço isto diariamente, e outras do mesmo género, tanto notícias públicas como privadas.”
Quem escrevia isto era Robert Burton, professor da Universidade de Oxford, num livro apropriadamente chamado Anatomia da Melancolia. Mas escrevia em 1621, há pouco mais de 400 anos. A solução que tinha encontrado para tanto excesso de informação era fechar-se em casa. Os portugueses, como Burton, não se podem queixar de falta de informação. Antes pelo contrário, o que ouvem diariamente são notícias novas e uma vasta confusão de promessas. Mas, ao contrário do sábio inglês, não se fecharam em casa. Foram votar. Só nos resta acreditar, como Eanes, na “ciência política” dos portugueses e se, mesmo que parecendo que votaram mal, terão votado bem. Goste-se ou não, o que o voto de ontem diz é que há uma vontade de mudança. Mas para onde?