Diário de Notícias

O povo é quem mais ordena

- Jornalista

Há democratas e democratas. Há os que aceitam os resultados eleitorais como reflexo do que, em cada momento, a sociedade pensa, e os democratas que só apreciam a democracia direta quando esses resultados lhes agradam.

A noite de domingo não trouxe previsibil­idade, nem governabil­idade, nem facilidade na formação de um Governo estável, mas o resultado é a decisão do povo soberano. Esse povo tantas vezes evocado, mas também tantas vezes esquecido por quem governa ou faz oposição.

Os resultados dão-nos pistas sobre o que pensa a sociedade dos que não estão no espaço público, na bolha mediática e nos discursos de circunstân­cia. São a resposta das pessoas que apanham transporte­s públicos, a quem falta salário para tanto mês, de quem tem, de facto, de gerir a vida a contar cêntimos e a fazer opções.

Os políticos deviam andar mais vezes de metro, comboio ou autocarro, em vez de o fazerem apenas uma vez durante a campanha eleitoral.

Agora, é o tempo “do Presidente”. Depois do tempo dos partidos e depois do momento do povo, Marcelo tem nas mãos o futuro próximo que ele já antevia que fosse de “miniciclos”. Provavelme­nte, tinha razão.

Estes resultados não me surpreende­m. A única exceção é o Livre, outro partido de um homem só, que passa de um para quatro deputados. Porquê? Porque Rui Tavares foi lembrando ao longo da campanha as pequenas grandes vitórias que conquistou. O passe ferroviári­o nacional, a semana de quatro dias e outras “boas ideias”. Sim, essas medidas fizeram, de facto, diferença na vida das pessoas comuns e o partido recebeu por elas justa retribuiçã­o. O Livre tem quase tantos deputados como o Bloco, que tem 20 anos, e o PCP, com mais de um século.

E o Chega e o seu milhão de votos? Nada surpreende, foram arrancados ao PS e à abstenção. Não há, em Portugal, um milhão de pessoas racistas, xenófobas e radicais. Mas há um milhão que deixou de acreditar nos partidos do costume, que está farta de tantos impostos e de tanto Estado, que canaliza esse descontent­amento para o voto. Os desencanta­dos com o “regime” são aqueles que não viram em 50 anos resposta para os problemas do dia a dia. Cada voto no Chega é da responsabi­lidade do PS e do PSD. O centrão já não consegue reter os desencanta­dos.

É possível que tenhamos de voltar às urnas ainda este ano. Se isso vier a acontecer por causa dos jogos palacianos no Parlamento, fica já o aviso – não estranhem se o Chega subir ainda mais. Depois não vale deitar as mãos à cabeça e chorar sobre leite derramado. O tempo, agora, é de responsabi­lidade e não de tática. De construção e não de bota abaixo. De serenidade e não de gritaria. Se cada um fizer o seu papel, se os resultados eleitorais forem respeitado­s, se o Governo que vier governar bem, talvez os descontent­es voltem “a casa”. O povo é quem mais ordena não pode ser só um verso de uma cantiga.

E, por fim, este é o povo que saiu à rua para votar, que fez baixar a abstenção e que mostrou que está cá. E é com este povo, o que temos, que temos de viver.

Ninguém no Chega ficará aborrecido se o partido obtiver mais um ou dois mandatos nos círculos da emigração, mas por enquanto o partido vive o simbolismo de ter quadruplic­ado o seu grupo parlamenta­r, com 48 deputados garantidos. Um cenário que começou a ser antecipado por André Ventura aquando da demissão de António Costa e da marcação de eleições antecipada­s, perante sondagens que indicavam hipótese de subida elevada, ainda que mais comedida do que os 18,06%, equivalent­es a 1.108.797 votos.

Garantida ficou a recandidat­ura de todos os 12 deputados eleitos a 30 de janeiro de 2022, mas com uma nuance. De terceira por Lisboa, Rita Matias, protagonis­ta da estratégia de captação de voto entre os jovens, foi “promovida” a cabeça de lista por Setúbal, enquanto Bruno Nunes fez o trajeto inverso, cabendo-lhe um sétimo lugar na lista de Lisboa que Ventura sempre garantiu ser elegível. Como se comprovou no domingo, pois o partido passou de quatro para nove deputados no principal círculo eleitoral do país.

Mas a manutenção de todo o grupo parlamenta­r – além de Ventura, Rita Matias e Bruno Nunes, reelegeram-se Rui Paulo Sousa e Pedro Pessanha (Lisboa), Rui Afonso e Diogo Pacheco de Amorim (Porto), Filipe Melo (Braga), Jorge Galveias (Aveiro), Gabriel Mithá Ribeiro (Leiria), Pedro dos Santos Frazão (Santarém) e o líder parlamenta­r Pedro Pinto (Faro) – dificilmen­te bastaria para dar resposta ao reforço de atividade parlamenta­r, pelo que o núcleo duro da bancada do Chega, que terá uma presença muito mais robusta no quadrante mais à direita do hemiciclo, incluirá “reforços” de outros partidos. Desde logo, Rui Cristina, deputado do PSD por Faro até há poucas semanas, que foi agora eleito por Évora. E outros ex-deputados sociais-democratas, como Eduardo Teixeira, que volta a representa­rViana do Castelo após ter sido afastado das listas do PSD por Rui Rio; Manuela Tender, que se juntou ao Chega há mais tempo e beneficiou do cresciment­o eleitoral para voltar a ser eleita porVila Real; e Francisco Gomes, cabeça de lista do Chega na Madeira, que passou pela Assembleia da República quando Luís Montenegro era o líder parlamenta­r de Pedro Passos Coelho.

Também com muita experiênci­a parlamenta­r, como deputada e assessora, Cristina

Rodrigues será outro esteio do Chega na Assembleia da República. Deputada não inscrita na legislatur­a que terminou em 2022, após ser eleita enquanto cabeça de lista do PAN por Setúbal, ganhou protagonis­mo na produção legislativ­a do Chega, na qualidade de assessora jurídica, e regressa agora ao hemiciclo, ao ser eleita enquanto terceira da lista pelo Porto. A seu lado terá outras figuras com experiênci­a política, como o ex-militante social-democrata António Pinto Pereira, um professor universitá­rio que tem sido apontado como um dos “ministeriá­veis” do Chega, no assaz improvável cenário de acordo com o partido que já foi seu, bem como o antigo conselheir­o nacional da Iniciativa Liberal Nuno Simões de Melo. Militar na reforma, e acabado de eleger como cabeça de lista pela Guarda, deve ser um dos protagonis­tas do grupo parlamenta­r nas áreas de soberania, havendo ainda Henrique de Freitas, eleito por Portalegre – o círculo que elege menos deputados, só com dois mandatos em jogo –, ex-deputado do PSD e que chegou a ser secretário de Estado da Defesa e Antigos Combatente­s.

No núcleo duro do grupo parlamenta­r quadruplic­ado também estarão vários próximos do líder do Chega que já tinham outras funções na Assembleia da República. É o caso dos assessores de imprensa Patrícia Carvalho (segunda por Setúbal) e Bernardo Pessanha (segundo por Viseu), do assessor jurídico Rodrigo Taxa (segundo por Braga e que foi assistente de André Ventura quando era professor na Universida­de Autónoma de Lisboa) e dos assessores políticos Marta Silva (vice-presidente do partido, que foi terceira por Lisboa) e Ricardo Dias Pinto, quinto dessa lista e responsáve­l pelas relações internacio­nais do Chega.

Sobram dezenas de recém-eleitos sem qualquer experiênci­a parlamenta­r, mas que em alguns casos são figuras emblemátic­as do partido. Destaca-se o polémico João Tilly, cabeça de lista por Viseu, cujos vídeos, muito partilhado­s nas redes sociais – só no Facebook tem 100 mil seguidores – prenunciam debates tensos com os deputados da esquerda.

O resultado eleitoral do Chega também abriu as portas de São Bento a muitos deputados que à partida não teriam hipóteses de eleição, incluindo o luso-brasileiro Marcus Santos, professor de artes marciais que é vice-presidente da distrital do Porto e se torna o segundo deputado negro do partido (após Mithá Ribeiro). E ainda a autora de livros infantis Luísa Costa Macedo (terceira por Santarém), o maestro Pedro Correia (segundo pelo mesmo círculo) e a professora Diva Ribeiro (cabeça de lista por Beja), entre muitos dirigentes distritais e concelhios com escassa experiênci­a política.

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