50 anos depois de Abril, o país entra num novo ciclo – disse o PR no sábado. O que queria dizer ao certo deveria ter agora de explicar, como ao resto que, ventríloquo, nos sussurra no Expresso. Até porque o que se vê é uma irrupção do “Portugal antigo” –
que quase toda a gente, entre jornalistas e analistas, finge que não percebe o que se passa, mantendo face ao PR e ao seu cargo uma reserva solene de reverência da qual ele, como se vê, está longe de comungar e, logo, merecer.
Como se ser Presidente da República numa democracia eximisse alguém de crítica e sindicância, colocando-o no lugar intocável reservado aos monarcas. Como, lá está, se esta figura dos políticos eleitos para o mais algo cargo da nação os fizesse necessariamente parte do tal Portugal “antigo”, miguelista, que o próprio Marcelo, filho de um ministro do salazarismo, reconhece ter durado até à sua maioridade – o Portugal antigo de que ele é, sem segredo, um produto.
Lembre-se aliás que este mesmo PR, a 25 de Abril de 2021, assumiu, num discurso notável, a sua história pessoal de testemunha do ocaso do império português. Para frisar, e bem, que todos temos uma, incluindo os capitães de Abril, e que esse grande acontecimento do nosso século XX foi, até pelo percurso dos seus obreiros, simultaneamente rutura e continuidade.
É: o Portugal que nasceu do 25 de Abril é um processo. Um processo, como nos lembra Marcelo (por palavras e atos), e agora também o esfuziante resultado da extrema-direita, no qual o Portugal antigo andou sempre por aí, esperando a sua oportunidade.
E é isso mesmo, dizia esta segunda-feira no Twitter Vicente Valentim, cientista político na Universidade de Oxford, que explica o rápido crescimento da extrema-direita a que se está a assistir em vários países do mundo, e também agora cá. “Muitas pessoas tinham já visões de extrema-direita, mas não as expressavam porque temiam o ostracismo social”, escreveu o investigador, que defende essa tese no livro O Fim da Vergonha - Como a Direita Radical se Normalizou (a publicar em abril). Com o surgimento de líderes habilidosos (como Ventura), é possível, argumenta, que movimentos com estas características “cresçam muito rapidamente – basta as pessoas começarem a agir em consonância com o que pensem/sentem.”
Desse processo de normalização em curso, que deu já tão óbvios frutos (e passa pela assolapada paixão mediática pelo líder do Chega), é exemplo perfeito o que ouvi esta segunda-feira quando uma mulher, sentada numa paragem de autocarro em Oeiras, disse ao microfone da SIC-N que tinha votado no partido de extrema-direita porque quer “para as filhas, netos e bisnetas o que havia antigamente, antes do 25 de Abril”. Perguntada pela jornalista sobre se nesse caso achava que o seu voto “vai melhorar a vida democrática do país”, a entrevistada diz que sim e que espera “melhoras na habitação e saúde”.
Confesso que, embora sabendo haver muita gente, incluindo entre quem a experienciou, que mitifica a ditadura – já escrevi aqui sobre isso, e sobre o facto de a meu ver tal dever ser interpretado, paradoxalmente, como sinal do triunfo da democracia e das suas conquistas, dadas como tão adquiridas que nem há já capacidade para imaginar ou recordar o que foi o salazarismo –, não me habituei ainda a ver tal mitificação brandida com tanto orgulho, e tratada, como sucedeu com a (jovem) jornalista da SIC-N, com tamanha banalidade.
Desculpem-me se não concebo que aquela afirmação não ocasionasse o exacto contrário da pergunta feita – porque, óbvio, quem tem saudades da ditadura e justifica com elas o voto num partido em princípio não está a pensar contribuir para “melhorar a vida democrática do país”. Admito que a pergunta da minha camarada de profissão tenha sido irónica, mas o que resulta dela é fazer parecer que antes do 25 de Abril não só havia democracia como era melhor e com mais condições sociais, serviços e apoios públicos que agora – o que é apenas uma barbaridade.
Que ante tal barbaridade uma jornalista passe em frente, como se não conseguisse descortinar a falsificação ou achasse que não lhe cabe esclarecer quem ouve (e até a entrevistada), porque, quiçá, tal seria visto e causticado como opinião ou tomada de posição política, é bem sinal do estado a que chegámos.