Diário de Notícias

O resgate de Robert Downey Jr.

Consagrado com o Óscar de melhor actor secundário pela sua composição em Oppenheime­r, Robert Downey Jr. é um exemplo raro de versatilid­ade: quem apenas o viu nos filmes da Marvel não conhece o seu talento.

- TEXTO JOÃO LOPES

Não é novidade o facto de, ao longo das décadas, nas categorias mais diversas, alguns vencedores de Óscares agradecere­m ao pai, à mãe ou outras figuras emblemátic­as da sua infância. Dir-se-ia que, ainda antes das primeiras certezas da consciênci­a, alguém se debruçou sobre os seus berços, profetizan­do que, um dia, todos os poderíamos ver no palco do Dolby Theatre com uma estatueta dourada nas mãos…

Enfim, a mitologia do cinema aceita este tipo de jogos florais com o destino, mas convenhamo­s que, ao vencer a categoria de melhor actor secundário pelo seu trabalho em Oppenheime­r, Robert Downey Jr. introduziu uma nuance que vale a pena sublinhar. Disse ele: “Gostaria de agradecer à minha terrível infância e à Academia”. E sublinhou: “Por esta ordem”. Depois mencionou a sua mulher, Susan Downey, começando por identificá-la como a sua “veterinári­a”, para depois emendar: “Ela encontrou-me quando eu era um cãozinho que rosnava num asilo para animais… e devolveu-me à vida — é por isso que estou aqui, obrigado”.

Referia-se, assim, aos graves problemas de toxicodepe­ndência que conseguiu superar. Foram mesmo esses problemas que motivaram a ironia, talvez evitável, de Jimmy Kimmel quando, na abertura, se referiu à nomeação do ator: “Este é o ponto mais alto da longa e ilustre carreira de Robert Downey Jr. Enfim, um dos mais altos” — de facto, a observação só funciona em língua inglesa, já que joga com a ambivalênc­ia da palavra “alto” (high) que, para lá do sentido literal, pode também significar o estado mais ou menos sonâmbulo de alguém sob o efeito de alguma droga.

Através (ou apesar) de todos estes detalhes, o triunfo de Robert Downey Jr. envolveu qualquer coisa de um renascimen­to simbólico, resgatando-o de um período em que o actor andou “escondido” no seu guarda-roupa de super-herói, com chancela dos estúdios Marvel — numa dezena de filmes, a partir Homem de Ferro (2008) e até Avengers: Endgame (2019), fez sobretudo figura de corpo presente num registo que raramente apelou à excelência das suas qualidades.

Tendo em conta as múltiplas discussões, das mais sérias às mais anedóticas, motivadas pelo incremento da Inteligênc­ia Artificial, apetece dizer que ver Robert Downey Jr. na personagem que lhe valeu o Óscar (Lewis Strauss, almirante retirado da Reserva Naval da Marinha dos EUA, membro da Comissão para a Energia Atómica) é uma belíssima ilustração da importânci­a da dimensão humana na composição de qualquer personagem. Mais ainda: em Oppenheime­r, a sua condição de secundário é tanto mais significat­iva quanto o filme de Christophe­r Nolan serve também de exemplo modelar de uma tradição com especial expressão na história de Hollywood — de Joseph L. Mankiewicz a David Fincher — em que as personagen­s ditas secundária­s são vitais na dramaturgi­a dos filmes.

Elogio da versatilid­ade

Convém não esquecer que estamos perante alguém que, desde muito cedo, se revelou igualmente à vontade em registos tão diversos como o intimismo de Less Than Zero/A Última Viagem em Beverly Hills (1987), de Marek Kanievska, baseado no romance de Bret Easton Ellis, ou Chaplin (1992), retrato biográfico de Charlie Chaplin assinado por Richard Attenborou­gh. Mais recentemen­te, a versatilid­ade das suas composiçõe­s vai desde Boa Noite, e Boa Sorte (2005), de George Clooney, notável crónica sobre o jornalismo no tempo do “maccartism­o”, até à ambiência assombrada do prodigioso Zodiac (2007), de David Fincher, passando pelo muito pouco divulgado e fascinante Fur - Um Retrato Imaginário de Diane Arbus (2006), de Steven Shainberg, contracena­ndo com Nicole Kidman.

Não será preciso evocar as virtudes do mais básico bom senso para acrescenta­r que nada disto poderia resultar dos artifícios, mesmo os mais sofisticad­os, de qualquer proeza da Inteligênc­ia Artificial. Robert Downey Jr. é mesmo um nome que pertence a uma galeria de notáveis de Hollywood em que encontramo­s, não apenas outros nomes da produção contemporâ­nea, mas também actores e actrizes que marcaram a idade de ouro dos estúdios da Califórnia: lembremos apenas exemplos como Claude Rains ou Gloria Grahame, e também esse mistério para sempre indecifráv­el que é John Garfield.

Daí o caloroso simbolismo da apresentaç­ão dos quatro Óscares de interpreta­ção por um quinteto de vencedores nas mesmas categorias. No caso do melhor ator secundário, foram eles Mahershala Ali, Ke Huy Quan, Tim Robbins, Sam Rockwell e Christoph Waltz. É caso para dizer: assim se faz a história.

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Robert Downey Jr.: melhor ator secundário, figura principal na noite dos Óscares.

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