Diário de Notícias

Este não é um tempo de adultos, como foi o tempo dos que sofreram a guerra. É um tempo de sonâmbulos, como foram os dirigentes europeus de antes da guerra de 1914-18.”

- Diplomata e escritor

(Jorge de Sena, Ode ao Futuro)

QFalareis de nós – de nós! – como de um sonho

uando este artigo for publicado, saberemos todos já os resultados eleitorais. As análises, as perspetiva­s e as prospetiva­s, multiplica­r-se-ão no espaço público e os comentador­es e agências de sondagens estarão felizes ou infelizes, conforme as voltas que conseguire­m dar às suas previsões.

Eu estou a escrever este artigo no dia de reflexão, dia que me parece propício a esta distância que a escrita põe entre nós e as coisas. A escrita reflete as nossas obsessões para melhor as refratar. Em qualquer coisa que me rodeia eu posso projetar a minha esperança e o meu medo.

A História deixou de seguir aquela linha ascendente de progresso e desenvolvi­mento, com que sonhavam uns, mas também não entrou no tempo cíclico de ascensão e decadência que imaginaram outros. Às vezes penso que a História anda um bocado aos bordos, com uma bebedeira tecnológic­a que a faz parecer desumana; outras vezes penso que tudo se inscreve, com o rigor de um puzzle, num quadro que escapa à nossa visão.

Os homens que fazem a História e governam hoje o planeta parecem dedicar-se aplicadame­nte à nossa destruição.Vivemos num mundo mais perigoso do que nunca: às vezes penso que nas crises do pós guerra tivemos adultos na sala e nas crises de hoje temos atores de psicodrama­s, que não se imaginam já Napoleões, mas creem ser a reencarnaç­ão de Pedro, Grande, Churchill, De Gaulle ou de si pró

oprios (caso de Trump) e brincam com o mundo como Chaplin no Ditador jogava ao ar o balão do globo terrestre.

Este não é um tempo de adultos, como foi o tempo dos que sofreram a guerra. É um tempo de sonâmbulos, como foram os dirigentes europeus de antes da guerra de 1914-18, um tempo em que as imagens ideais se sobrepõem por todo o lado ao cálculo racional das consequênc­ias, um tempo onde as convicções tendem a prevalecer sobre as responsabi­lidades.

Foi dentro deste mundo que anteontem exercemos o nosso direito de voto e os resultados são o que são, caros leitores da próxima terça-feira, eu incluído. Deram conta que daqui a semanas festejamos o 25 de Abril?Visto de há 50 anos, como nos pareceria o país hoje?

“Imagina: voltaram a ser legais e autorizado­s os partidos políticos e as eleições podem ser ganhas ou perdidas pelo poder vigente. Os Governos mudam e há diferentes programas políticos que se enfrentam nas eleições. Até os comunistas fazem já livremente a sua propaganda! Deixou de haver colónias e Guerra Colonial. Angola já não é nossa! Não há polícia política, nem censura dos jornais. Os trabalhado­res podem livremente fazer greve e organizar-se em sindicatos.Vi manifestaç­ões contra os governante­s, que nenhuma polícia de choque veio dispersar. Os cuidados de saúde tornaram-se gratuitos para todos. As pessoas andam geralmente com um aspeto mais próspero e bem-vestido, mas continua a haver muita pobreza e discrimina­ção nesta sociedade. O aprofundar das desigualda­des, que se acentuaram muito nos últimos tempos, fez aumentar a revolta, num país que continua a ter os salários mais baixos da Europa Ocidental.”

Este relatório de um observador de 1974 sobre o Portugal de 2024 foi-me inspirado por um poema de Jorge de Sena que ironiza com a nossa tendência a ver no passado e nos passados idades de ouro. O passado nunca foi um lugar recomendáv­el, por muito que o sonhemos a partir das misérias e angústias do tempo que vivemos.

Vamos agora começar a pensar a sério e a procurar entender o profundo descontent­amento de tantas pessoas?

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