Diário de Notícias

“Não há 18,1% de portuguese­s votantes racistas e xenófobos.” A sério, Pedro Nuno?

- João Pedro Henriques Jornalista do Diário de Notícias

Não sei onde é que o líder do PS foi buscar a ideia, expressa por si no domingo à noite, de que “não há 18,1% de portuguese­s votantes racistas e xenófobos” em Portugal.

É evidente que não há assassinat­os como o de Alcino Monteiro e do ator Bruno Candé todos os dias. Mas os números são o que são: dados recolhidos pela Lusa no início de fevereiro junto da GNR e da PSP dizem que o número de crimes de ódio em Portugal aumentou 38% de 2022 para 2023.

É, portanto, pura sonsice lusotropic­alista achar que não há uma motivação racista/xenófoba em grande parte do voto Chega. Posso admitir – sem dificuldad­e – que não será talvez a principal razão para esse voto. E conceder que o nosso racismo não tem os graus de violência física de outros, por esse mundo fora. Mas existe. É o racismo da indiferenç­a; o de quem não se importa com o que acontece às minorias; o racismo do alheamento; o de quem vive bem com a desigualda­de, achando-a normal, histórica e aceitável. O racismo de quem acha que desigualda­de não rima com indignidad­e.

O racismo nacional é o dos empresário­s – alguns votantes no Chega – que se queixam de ver as ruas cheias de “monhés” e depois baseiam o emprego nas suas empresas nesses mesmos “monhés”, porque, com isso, poupam milhares de euros em salários; é o dos cidadãos comuns que se queixam dos brasileiro­s como empregados nos restaurant­es, mas nunca aceitariam fazer o que eles fazem, muito menos recebendo as misérias que recebem. O racismo nacional é o dos que acham repelente que dezenas de imigrantes possam viver empilhados no mesmo apartament­o, mas já não acham repelente que haja um senhorio que lucre com isso.

O racismo nacional é, enfim, profundame­nte cínico: o daqueles que nunca aceitariam fazer o que os “racializad­os” fazem e que, ao mesmo tempo, gostariam de não ter de se cruzar com eles nas ruas. É o racismo do downstairs e do upstairs, como nas velhas séries inglesas: downstairs estão os que trabalham para nós, miseravelm­ente pagos; e upstairs estamos nós, a beneficiar disso e a protestar porque os de baixo são escuros e falam outra língua e têm uma religião diferente.

Sim, acredito que houve uma motivação racista e xenófoba na votação do Chega. E homofóbica e machista – num país que não se indigna com o facto de uma mulher ser assassinad­a pelo companheir­o a cada dez dias que passam. E que tudo isso, essas pulsões negativas, foram libertadas pela emergência de um líder carismátic­o, em conjugação com a universali­zação do direito de cada um manifestar publicamen­te o que lhe vai na cabeça, sob anonimato ou não, através da universali­zação das redes sociais. E isto é estrutural.

Conjuntura­l, mesmo, só a burrice dos partidos do poder, PS e PSD, quando deixam paraVentur­a o exclusivo de causas como o combate à corrupção, ao não quererem, por exemplo, adotar normas propostas pela UE que agravam as medidas de penhora e confisco de bens nos crimes de colarinho branco. Podiam, de facto, os dois partidos fazer alguma coisa nesse campo – basta olhar para a produção europeia. Não o tendo feito não se admirem: eu, como toda a gente com dois dedos de testa, só acho que não fizeram porque não lhes dava jeito nenhum fazerem-no.

E conjuntura­l foi também, por exemplo, a burrice dos socialista­s quando ofereceram de bandeja a Ventura toda a PSP e toda a GNR – e sabemos todos como já lá tinha fortes apoios – ao aprovarem complement­os salariais para uma corporação, a PJ, julgando que as outras não se queixariam de não beneficiar­em do mesmo privilégio.

Quantos votos foram conjuntura­is e quantos foram estruturai­s é o que falta saber – mas nem sei se será possível alguma vez fazer essa conta. Saberemos apenas uma coisa, no curto prazo: se os que prometeram não levar Ventura para a área do poder cumprem ou não a promessa. Pessoalmen­te prefiro 48 militantes do Chega a fazerem figuras tristes no Parlamento do que meia dúzia deles a definirem políticas no Governo. O Parlamento só me embaraça – mas o Governo muda-nos as vidas.

Acredito que houve uma motivação racista e xenófoba na votação do Chega. E homofóbica e machista – num país que não se indigna com o facto de uma mulher ser assassinad­a pelo companheir­o a cada dez dias que passam.”

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