Estrasburgo contra Bruxelas por “ato de extorsão em nome de Orbán”
Eurodeputados temem que Bruxelas tenha usado verbas da Coesão “como moeda de troca para convencer a Hungria” a apoiar a Ucrânia.
Os eurodeputados da Comissão de Assuntos Jurídicos (JURI) do Parlamento Europeu querem processar a Comissão Europeia num caso que envolve milhares de milhões de euros em verbas comunitárias para a Hungria. A decisão foi adotada quase por unanimidade, na noite de segunda-feira, em Estrasburgo, na reunião da comissão parlamentar responsável pela interpretação e aplicação do direito europeu, incluindo a análise da ética sobre a aplicação das leis comunitárias e do Estado de Direito.
Está em causa um montante de 10,2 mil milhões de euros, do fundo de Coesão, que estava congelado devido às dúvidas relativamente à independência do poder judicial na Hungria. Porém, em dezembro de 2023, a Comissão Europeia decidiu propor que as verbas fossem desbloqueadas, antes de uma Cimeira Europeia, em que os 27 acabaram por aprovar a abertura de negociações formais para a adesão da Ucrânia à União Europeia.
Naquela altura, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, opunha-se à decisão relativa ao pedido de adesão da Ucrânia. E, sem o voto unânime no Conselho Europeu, não haveria novos passos no pacote do alargamento. Porém, a cimeira de dezembro ficaria marcada por uma dita “solução elegante” de Orbán, que abandonou a sala no momento da votação. Na prática, resultou numa abstenção. A figura jurídica, presente no artigo 235.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE, permitiu encontrar a necessária “unanimidade” na configuração de 26 chefes de Estado ou de Governo da UE, garantindo a aprovação da proposta da Comissão para a abertura de negociações formais com Kiev, para a adesão da Ucrânia à União.
Já em fevereiro, o mesmo Orbán, que fazia finca-pé contra o financiamento europeu de 50 mil milhões de euros para manter o Estado ucraniano a funcionar, acabou por aprovar sem hesitações a ajuda a Kiev, numa cimeira extraordinária, em que se previa uma nova maratona de negociações com Budapeste.
Roberta Metsola e Ursula von der Leyen, os dois rostos deste feudo europeu.
A eurodeputada Portuguesa, que integra a comissão parlamentar JURI, Maria Manuel Leitão Marques (PS), em declarações ao DN, alertou para o “temor” de que a decisão de Bruxelas de descongelar verbas da Coesão, “tenha sido usada como moeda de troca para convencer a Hungria a apoiar os 50 milhões de ajuda à Ucrânia”.
Contactado pelo DN, o gabinete de Didier Reynders, comissário europeu com a pasta dos Assuntos Jurídicos, afirma que “a Comissão [Europeia] toma nota da decisão da comissão parlamentar JURI”. Porém, salienta que a decisão de Bruxelas “está vinculada aos prazos rigorosos e às condições estabelecidas na legislação aplicável da União”.
O relator-sombra na Comissão JURI, Sergey Lagodinsky (Verdes), é ainda mais crítico e considera que “a decisão da Comissão (...) que permitiu pagamentos de mais de dez mil milhões de euros à Hungria, foi um ato de extorsão em nome de Orbán”. O deputado considera que “não houve uma avaliação precisa das reformas na Hungria” e “alerta que “as decisões da UE não podem ser compradas e vendidas com dinheiro”. Mas, Bruxelas alega que seguiu “obrigação legal”.
“A Hungria tinha apresentado todas as provas que a Comissão tinha exigido para demonstrar a independência do seu poder judicial”, sublinha o gabinete de Didier Reynders, vincando que à Comissão não restava outra possibilidade a não ser seguir “a obrigação legal de adotar a decisão” de descongelamento de verbas para a Hungria.
Maria Manuel Leitão Marques considera que “a decisão é polémica e discutível”, mas entende que “cabe agora ao tribunal decidir”. Por sua vez, a Comissão Europeia promete “defender a sua decisão perante os tribunais da UE, considerando que “agiu em total conformidade com o direito comunitário”. Porém, a deputada alerta que a decisão de processar a Comissão também “é fundamentada pelos serviços jurídicos” do Parlamento Europeu. “Se achássemos que não havia nenhuma margem para podermos ganhar este processo, com certeza, não a teríamos tomado”.
“Iniciar processos legais contra a Comissão é um passo extremo, mas necessário”, admite Lagodinsky, com o deputado dos Verdes a considerar que o “Parlamento tem agora de intervir, para
evitar situações escorregadias no futuro”. “Não podemos permitir que a Comissão e o Conselho continuem a dar a Viktor Orbán margem para chantagear a UE, bloquear as decisões que são necessárias e [ao mesmo tempo] a continuar os seus ataques ao Estado de direito, à democracia e aos direitos fundamentais no país”, afirma em nota à imprensa.
A recomendação da comissão parlamentar JURI foi aprovada por 16 dos 17 deputados, com o voto contra do deputado do grupo parlamentar Identidade e Democracia, que reúne partidos de extrema-direita, e que, de modo informal, é o mais próximo do partido Fidesz, de Orbán, desde a sua desfiliação do Partido Popular Europeu, em 2021.
A recomendação de levar a Comissão a tribunal terá ainda de ser aprovada pela presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, em conferência de presidentes dos grupos parlamentares, que, em conjunto decidirão, se tem fundamento para ser levado ao Tribunal de Justiça da UE. O Parlamento deverá “decidir, até 25 de março, se interpõe o recurso de anulação ou não”, especificou a deputada Leitão Marques.