Gestos e fragmentos da nossa história
Com data de 1982, Gestos & Fragmentos é um objeto precioso para a discussão do pós-25 de Abril. Graças à plataforma Zero em Comportamento, o filme de Alberto Seixas Santos está de novo disponível, convidando-nos a repensar as narrativas de que se faz a hi
Revisitar o 25 de Abril através do cinema pode, pelo menos, ajudar-nos a pressentir que a representação do advento da democracia política em Portugal não se esgota nos clichés correntes, quer nos discursos banalmente panfletários, quer em alguma retórica televisiva. Observe-se o exemplo de 50 anos de Abril: Que Farei eu com esta Espada?, ciclo que a Cinemateca programou para todo o ano de 2024, apostando numa sugestiva memória de muitos ziguezagues temporais, narrativos, geográficos e culturais. E acrescente-se a proposta agora disponível no videoclube da plataforma Zero em Comportamento [zeroemcomportamento.org]: Gestos & Fragmentos, longa-metragem de 1982 realizada por Alberto Seixas Santos (1936-2016).
Sublinhe-se, antes do mais, o saudável sentido de oportunidade da Zero em Comportamento, e não apenas porque estamos em ano de comemorações de meio século dos acontecimentos que puseram fim à ditadura do Estado Novo. Acontece que, mais do que nunca, importa superar as fórmulas que tendem a representar a nossa história como um “telefilme” de personagens esquemáticas, obrigatoriamente “heroicas”, sem densidade política, nem espessura humana.
Não se trata, entenda-se, de procurar verdades universais, obrigatoriamente redentoras, em que todos se reconheçam “automaticamente”. Em boa verdade, a interpretação da história do 25 de Abril (ou de qualquer outra conjuntura de complexidade semelhante) raras vezes gera consensos imaculados. O mínimo que se pode dizer de Gestos & Fragmentos é que se trata de um filme que vive, antes de tudo o mais, das diferenças de pensamento e argumentação dos seus protagonistas. São eles: um dos militares que fez o 25 de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021); um ensaísta e filósofo da portugalidade, Eduardo Lourenço (1923-2020); e um dos autores mais emblemáticos do cinema independente dos EUA, Robert Kramer (1939-1999).
Documentário & ficção
A conjugação das três personagens vai gerando uma lógica narrativa que tem o seu “ponto de fuga” na presença de Kramer. De facto, ele é o único que, no ecrã, não “coincide” com a sua própria história: assume os traços de uma personagem fictícia, um jornalista americano que investiga as circunstâncias em que ocorreu o 25 de novembro de 1975, nele reconhecendo a vibração de um momento real e simbólico em que o 25 de Abril se espelha, adensa e discute.
Autor de Milestones (1975), um clássico absoluto sobre a América
O subtítulo de
é: “Ensaio sobre os militares e o poder”. dos anos 1960/70, dramaticamente marcada pela Guerra do Vietname, Kramer viveu e trabalhou entre nós, tendo realizado em 1977 o filme Cenas da Luta de Classes em Portugal. A sua presença em Gestos & Fragmentos serve para “descentrar” o filme, abrindo-o a uma perspetiva exterior, ou seja, não-enraizada diretamente na história do próprio país. Usando uma terminologia que, mais tarde, para o melhor ou para o pior, se tornou vulgar, Kramer é o grão de areia que questiona as fronteiras de “ficção” e “documentário”.
Se há dimensão documental em Gestos & Fragmentos, as suas singularidades emanam, justamente, das presenças do militar e do filósofo: Otelo expondo a sua leitura do 25 de Abril e dos tempos que se seguiram, com particular atenção aos sucessivos abalos, conversões e reconversões a que foi sujeita a hierarquia do próprio Exército; Lourenço (lendo textos de sua autoria) analisando as incidências políticas de tais acontecimentos, porventura o nascimento de uma nova cultura política.
A certa altura, Seixas Santos reúne-os num frente a frente cujo confronto de ideias – pontuado pela nitidez, e também pelos enigmas, dessa entidade a que chamamos “povo” – tem qualquer coisa de mútua entrevista, inesperada e fascinante. Sem esquecer que o subtítulo de Gestos & Fragmentos é: “Ensaio sobre os militares e o poder.”
No limite, e ao contrário do que proclamam as convenções televisivas dominantes, a fronteira entre documentário e ficção talvez nunca se estabilize. Surge mesmo, implicitamente, como matéria de discussão no interior do filme. Porquê? Porque, em termos cinematográficos, documentar não é o mesmo que “repetir” factos que ocorreram – não há possibilidade de “repetição”, tudo é representação. E mesmo quando alguém recorre a materiais de arquivo filmados, a sua utilização envolve sempre algum tipo de contextualização – aliás, de recontextualização.
O tempo da história
O trabalho de Seixas Santos foi sempre marcado pela preocupação de encenar as convulsões da sociedade portuguesa para lá dos lugares-comuns “sociológicos” que, entretanto, tomaram o poder no universo formatado da telenovela. A sua derradeira longa-metragem, Eo Tempo Passa (2011), é mesmo um dos raros momentos da nossa produção cinematográfica capaz de reconhecer e questionar o efeito “normalizador”, profundamente redutor, da telenovela na perceção do nosso quotidiano.
Antes do 25 de Abril, Seixas Santos filmara Brandos Costumes, concluído já depois daquela data (estreou-se em 1975), beneficiando da possibilidade de integrar materiais de arquivo do salazarismo. Nele encontramos outro tipo de duplicidade narrativa: por um lado, o retrato de uma família “típica” do Estado Novo, com a figura do pai a impor-se no dia a dia como projeção do modelo dirigente de Salazar – e, para os que nos querem convencer de que a grandeza dramática e moral das personagens femininas é uma invenção do #MeToo, sugere-se que recuem 50 anos e descubram as presenças de Isabel de Castro e Sofia de Carvalho em Brandos Costumes; por outro lado, os contrastes de uma montagem, devedora de um método inaugurado, ainda no mudo, por Sergei Eisenstein, envolvendo várias cenas do próprio Salazar, com destaque particular para o seu discurso de defesa dos valores, apresentados como indiscutíveis, de “Deus, Pátria, Família”.
Gestos & Fragmentos reaparece, assim, como objeto revelador de um tempo social ainda contaminado pelas atribulações ideológicas do PREC. Mais do que isso: para lá das memórias que guarda, há nele uma pedagógica atualidade narrativa, discutindo, ponto por ponto – através das imagens e dos sons –, o modo como organizamos a nossa perceção da história. Aliás, a perceção da nossa história.
ACantarinha dos Namorados de Guimarães, “peça icónica da olaria” local, foi incluída no Registo Nacional de Produções Artesanais Tradicionais Certificadas, segundo um despacho ontem publicado em Diário da República.
É aprovada a inclusão da produção tradicional Cantarinha dos Namorados de Guimarães no Registo Nacional de Produções Artesanais Tradicionais Certificadas, sendo titular do registo, enquanto entidade promotora, a Oficina – Centro de Artes e Mesteres Tradicionais de Guimarães”, lê-se no despacho assinado pelo presidente do conselho diretivo do Instituto do Emprego e da Formação Profissional (IEFP), Domingos Ferreira Lopes.
A Cantarinha dos Namorados de Guimarães reproduz a forma de um cântaro de água e é composta por quatro peças – cântara; prato; púcara e tampa –, produzidas em barro vermelho com recurso à roda de oleiro e decoradas com pó de mica que incorpora motivos florais feitos de barro em relevo, ou por marcação em baixo-relevo de elementos de cariz geométrico.
“Trata-se de uma peça icónica cuja perpetuação foi garantida por incontáveis gerações de oleiros ao longo de, pelo menos, 500 anos, sendo, por isso, testemunha de toda a história da olaria de Guimarães”, sustenta a Oficina, entidade promotora, na candidatura apresentada.
Quanto à delimitação geográfica da área de produção, as unidades produtivas artesanais, que se dedicam à arte da cerâmica, localizam-se, hoje em dia, nas freguesias de Oliveira do Castelo e de Fermentões, mais próximas da cidade de Guimarães, no Distrito de Braga.
“Mas também nas mais afastadas freguesias de Brito e de Lordelo. Daí que se considere todo o concelho como área de produção da ‘Cantarinha dos Namorados de
Guimarães’ e como limite territorial da indicação geográfica a registar, na perspetiva de que a sua certificação ajudará a formar novas unidades produtivas em todo o território vimaranense”, lê-se ainda no anexo junto ao despacho publicado.
Na manufatura da cantarinha, a primeira tarefa consiste, segundo o promotor, na preparação do barro, que deve ser bem amassado, a que se segue o trabalho na roda de oleiro tradicional (roda alta movida pelo batimento do pé no eixo inferior) ou em roda elétrica que, basicamente, substitui a tração humana pelo recurso à energia elétrica.
“De seguida, são executadas as restantes peças: prato, púcara e tampa. Esta última peça é rematada por uma pequena figura zoomórfica esculpida em forma de pássaro com as asas abertas, acompanhada por outras três aves de tamanho inferior, numa representação simbólica da mãe e da sua prole”, explica a Oficina.
De acordo com a Oficina – Centro de Artes e Mesteres Tradicionais de Guimarães, a Cantarinha dos Namorados de Guimarães é reconhecida pela sua forma, associada a um ato simbólico que pertence ao domínio da troca de sentimentos afetivos entre as pessoas.
“É, por isso mesmo, um objeto contador de histórias. O caminho para criações inovadoras passará por manter o desenho das suas características formais, abrindo campo para o uso de novos materiais cerâmicos e matérias-primas, desde que complementares ao barro. No entanto, e respeitando a sua simbologia, o conceito das novas criações terá também de ir ao encontro, embora dentro de um pensamento artístico contemporâneo, à mensagem que acompanha a cantarinha tradicional: a celebração do amor”, sustenta o promotor.