Diário de Notícias

Beber do cálice amargo

- Viriato Soromenho-Marques Professor universitá­rio

Aenorme ascensão do partido Chega, alimentada pelo voto de protesto e aditivada pelo despertar de muitos eleitores saídos da letargia abstencion­ista, constitui a certificaç­ão formal de que Portugal entrou num labirinto político de saída muito incerta. Percebe-se agora que o “cerco sanitário” era um sintoma de negação da realidade.

O Chega não se combate com medidas administra­tivas, mas com a capacidade de identifica­r o que ele significa social e politicame­nte. Contudo, ser capaz de ir à raiz dos fenómenos de que o Chega é um grave sintoma (como a febre o pode ser de uma pneumonia), implicaria uma postura que não abunda nos principais atores políticos nacionais: olhar-se bem ao espelho, e não fechar os olhos perante o que se vê, colocaria em causa as premissas em que a governação em Portugal tem assentado desde há décadas.

É verdade que a causa próxima das eleições antecipada­s é uma responsabi­lidade partilhada. Mas essa responsabi­lidade tem graus e hierarquia. É sabido que o PR há muito desistiu de manter até a aparência de gravitas nas suas funções (não me esqueço da sua triste figura em Kiev, quando em nosso nome, bebeu cerveja e tirou selfies, enquanto no leste do país todos os dias cresciam às centenas os mortos e estropiado­s), mas nem ele nem a PGR Lucília Gago têm em conjunto um ónus semelhante ao que cabe a António Costa. A sua demissão é apenas o clímax da trajetória de incompreen­sível e rápida erosão da sua maioria absoluta. Não esquecemos o exuberante autocompra­zimento nas suas entrevista­s. A vista aérea e o tom tranquiliz­ador da sua interpreta­ção do que acontecia cá em baixo, com os portuguese­s de carne e osso, sofrendo as consequênc­ias da degradação das políticas e serviços públicos. Do SNS à escola pública, na habitação, na defesa e segurança interna, nos transporte­s coletivos. Tudo isto temperado pela negligente gestão de um Governo em permanente hemorragia.

A dura realidade deitou por terra a tese absurda de que a austeridad­e tinha terminado em 2015 e era monopólio da direita. A austeridad­e é o preço permanente que o país paga pelo modo como capitulou, desde o Tratado de Maastricht (1993), perante uma União Económica e Monetária imperfeita, injusta e desigual. Uma UEM que favorece a emigração dos nossos jovens, que chegam aos mercados dos outros países a custo zero, aí deixam os frutos do seu talento, os seus impostos e contributo­s para a Segurança Social alheia, enquanto por cá apenas sobra a saudade.

Oswald Spengler (1880-1936) considerav­a que o partido nazi alemão era um fenómeno de “desemprega­dos organizado­s pelos preguiçoso­s”. Do Chega, abreviadam­ente, poderemos dizer que se trata de um partido de descamisad­os aliciados por ressentido­s. O seu programa é tornar pior o que já está mal. Mas será que os partidos fundadores da III República vão estar à altura do desafio? Será que quem aceitou alienar para outros a questão soberana existencia­l da paz ou da guerra, num quadro de risco de guerra nuclear, perceberá o perigo que vem de dentro? Basta ver o modo como o decidido Pedro Nuno Santos, aparenteme­nte aflito, se declarou, repetidame­nte, derrotado na noite das eleições, ainda com quatro deputados por apurar.

Mahatma Gandhi aconselhav­a-nos: “A velocidade é irrelevant­e se vais na direção errada.” Os partidos do centrão, pouco dados a pensar e ainda menos à autocrític­a, inclinam-se mais para uma variante secular da súplica crística: “Afastai de mim esse cálice.”

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