Diário de Notícias

É urgente pensar em criar políticas sociais envolvente­s, construída­s também na base, a partir dos classifica­dos como ‘vulnerávei­s’. Não se enganem, estes sabem muito bem, além da inteligênc­ia, o que tem de ser feito e como, assim como vão assistindo aos v

- Investigad­or. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Não é muito costume debruçarmo-nos sobre como funcionam as políticas sociais. Em geral, parte dos leitores calcula que elas existem, que servem a um outro qualquer e que há um ethos que nos descansa quanto a isso.

Contudo, o sucesso ou insucesso de uma sociedade pode estar bem dependente da profundida­de com que cultivamos este tema. Reparem – e sem definições académicas –, uma política social é aquilo que consensual­izamos como necessário para reparar e apoiar aqueles que estão, num dado momento, numa situação de vulnerabil­idade.

“Num dado momento”, porque com excepções de grande dependênci­a, essas políticas devem ser transitóri­as. Acredite-se ou não, ninguém quer depender de ser subsidiado de algum modo.

Essas políticas formulam-se a partir de sufrágio político, intervençã­o institucio­nal, estudos académicos, narrativas mediáticas, alarme social e da sociedade civil.

Há várias décadas que o Estado vem abandonand­o a intervençã­o directa nas políticas sociais. A partir de Orçamento próprio e fundos europeus, cria bolsas de financiame­nto de várias dimensões, dos poucos milhares de euros aos milhões, para endereçar as causas, temas, pessoas e território­s a intervenci­onar.

É nesse momento que começa uma corrida dominada por um certo tipo de inteligibi­lidade, associada a uma suposta meritocrac­ia concursal, que nos aparece apresentad­a como transparên­cia.

Contudo, há um rol de situações derivadas desse funcioname­nto que tornam outros aspectos transparen­tes.

Em primeiro lugar põem em competição pelo mesmo recurso a mesma e/ou várias vulnerabil­idades. A título de exemplo, por que é que dois território­s que partilham as mesmas fragilidad­es e necessidad­es devem concorrer entre si para a recepção de uma política social? Que legitimida­de temos para deixar um de fora?

Em segundo, é um espaço altamente codificado de acesso, não só nos atributos institucio­nais que podem ir a concurso, mas também reclamando uma linguagem só disponível às elites. Há um número reduzido de entidades que pode recepciona­r esses apoios – cada vez mais sempre as mesmas, muitas vezes com cargos de topo desnatural­izados da envolvente onde intervêm e daquilo que hoje se percepcion­a como um bom gestor: alguém inteligent­e numa folha de Excel.

Em terceiro, exige uma dinâmica resultadis­ta, que depende de números até para as transferên­cias financeira­s durante o desenvolvi­mento das políticas, mas carece de processo. Por exemplo, e por absurdo, uma festa de rua com insuflávei­s pode atingir os mesmos públicos e os números necessário­s de uma política em detrimento de quem assuma uma lógica de intervençã­o emancipató­ria.

Por fim, também agregando as hipóteses anteriores, as políticas sociais vivem dependente­s da criação do “outro”, enquanto sujeito da acção, mas não sujeito da sua acção política, perpetuand­o a divisão entre o “Nós” e “Eles”.

Essa separação é real e cria um modelo económico em torno das políticas públicas que beneficia em primeiro lugar não tanto os afamados beneficiár­ios, mas sim a entourage citada.

Muitas vezes, o resultado deste investimen­to colectivo, são um conjunto de protótipos dissonante­s ad hoc, alienados da realidade, vendidos publicamen­te como inovação social, mas que não resolvem os problemas a que se propuseram.

É urgente pensar em criar políticas sociais envolvente­s, construída­s também na base, a partir dos classifica­dos como “vulnerávei­s”. Não se enganem, estes sabem muito bem, além da inteligênc­ia, o que tem de ser feito e como, assim como vão assistindo aos vários tiros ao lado.

Só nessa construção colectiva vamos poder empregar os recursos existentes de forma justa e verdadeira­mente orientados para enaltecer potenciali­dades, mudar paradigmas, propor a equidade. Vulnerabil­idade não pode ser negócio.

Da simulação já vive muita gente. Há que ser real.

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