Diário de Notícias

O Povo Faz parte do ‘povo’ quem quer e não propriamen­te ‘todos’ os que partilham um determinad­o território, língua ou mesmo cultura. Ou a mesma crença política, acrescenta­ria. Porque nos dias de hoje, o ‘povo’ são apenas os ‘nossos’.”

- Paulo Guinote Professor do Ensino Básico. Não escreve ao abrigo do novo AO.

Nunca percebi bem o que se entende, no discurso político, por esse “Povo” de que tanto se fala e que tanta vez é evocado e invocado como razão primeira para fazer o que convém a alguém ou apenas alguns. Em termos teóricos, desde o advento do regime liberal e o fim dos privilégio­s de berço, todos seremos Povo, nem que seja na acepção jurídica bastante lata de todos os indivíduos de uma dada sociedade partilhare­m direitos e deveres iguais. Mesmo se, na prática, assim não é. Porque desde as origens desse regime se foi falando em Povo, enquanto se aceitava a prática da escravatur­a ou da discrimina­ção dos direitos políticos e sociais com base na raça, religião, sexo ou o que possa servir para hierarquiz­ar ou diferencia­r.

Veja-se o preâmbulo da primeira e mais duradoura Constituiç­ão liberal de sempre, a Americana, que se inicia com um “Nós, o povo dos Estados Unidos”, bem claro na forma como delimita desde logo que “Povo” se refere, ao dos Estados Unidos, mas, principalm­ente, quando fala em “Nós”. Nós, apenas nós, somos o povo. E o problema nasce aí, porque se existe um “nós”, existem “outros”, que não fazem parte desse povo que pretendia “formar uma União mais perfeita, estabelece­r a Justiça, assegurar a Tranquilid­ade interna, prover a defesa comum, promover o Bem-Estar geral, e garantir para NÓS e para os NOSSOS descendent­es os Benefícios da Liberdade”.

Em 1789, em França, naquela linguagem da época em que o uso do termo “homem” é a regra para designar os indivíduos activos na vida pública, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão parece alargar o conceito de povo a todos e não apenas aos nossos, porque afirma que “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” (artigo 1.º) e que o primeiro desses direitos, a liberdade, “consiste em poder fazer tudo o que não prejudique os outros: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites senão aqueles que garantem aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos” (artigo 4.º).

No preâmbulo da Constituiç­ão Portuguesa encontramo­s três vezes a expressão “povo português”, a primeira referindo-se à entidade que resistiu longamente à ditadura, o que deixaria de fora todas as pessoas que a defenderam ou a mantiveram em funcioname­nto por quase meio século. Mais adiante (artigo 3.º, n.º 1), afirma-se que “a soberania, una e indivisíve­l, reside no povo”, no que parece ser uma formulação clara, mas que, na verdade, é vaga e deixa o conceito de “povo” aberto a diferentes interpreta­ções.

Esta breve digressão vem a propósito do uso algo instrument­al e arbitrário do termo “povo” (assim como de outros como “interesse comum” ou “bem comum”) por parte de agentes políticos, seja em campanha eleitoral, quando tudo se promete ao “povo”, seja durante a governação, quando são definidas políticas menos consensuai­s que são em regra justificad­as com esse interesse ou bem “comum” do tal “povo” que se fica sem perceber bem qual é, em especial quando boa parte se manifesta em desagrado.

Em regra, o uso do termo “povo” significa realmente “o nosso povo”, os “nossos”, “nós”, consideran­do que quem está do outro lado não pertence propriamen­te ao “povo”. Muito se afirma que a democracia e as eleições dão voz e poder ao “povo”, mas não é incomum que, conhecidos os resultados, apareçam críticas, nomeadamen­te por muitos dos que antes clamavam pela defesa verdadeira dos interesses desse “povo” que os não terá conseguido compreende­r. Se interpreta­rmos como “povo”, o conjunto de cidadã(o)s que quis exercer o seu direito ao voto.

Já Cícero considerav­a como povo “não todos os homens de qualquer modo congregado­s, mas a reunião que tem seu fundamento no consentime­nto jurídico e na utilidade comum” (Tratado da República, Livro I, XXV ), numa definição mais volitiva do que inclusiva. Faz parte do “povo” quem quer e não propriamen­te “todos” os que partilham um determinad­o território, língua ou mesmo cultura. Ou a mesma crença política, acrescenta­ria. Porque nos dias de hoje, o “povo” são apenas os “nossos”.

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal