Such Brave Girls: comédia extremamente desagradável
Novo talento da comédia britânica, Kat Sadler assina uma série de brilhante desconforto. Such Brave Girls mexe com pensamentos suicidas e outras questões delicadas, pegando no humor como arma de defesa pessoal. Chega amanhã à Filmin.
Quão genuína pode ser uma sitcom? Tão genuína que até o estado depressivo de uma personagem se baseia na depressão da atriz que a interpreta. É essa a lógica interna de Such Brave Girls, uma série britânica semiautobiográfica que parece querer acabar de vez com os pruridos em abordar os “problemas sérios” da intimidade (feminina), usando o filtro da comédia mais corajosamente indelicada. E o nível de sucesso da sua ideia tem tudo que ver com a origem: num belo dia de 2020, em pleno confinamento, as irmãs Kat Sadler e Lizzie Davidson tiveram uma conversa franca ao telefone, que acabou com uma a revelar que tinha contraído uma dívida de 20 mil libras, e a outra a dizer que a sua saúde mental andava pelas ruas da amargura, tendo sido internada depois de tentar pôr termo à vida por duas vezes... Como responder a isto? Consolo miserabilista não faz o estilo das irmãs em causa. O resultado do telefonema terá sido uma gargalhada mútua. E a posterior epifania.
Pois bem, a mente criativa aqui é também a mente depressiva por excelência, Kat Sadler, uma jovem humorista que começou o seu percurso na comédia stand-up e passou à escrita para televisão, estreando-se a título pessoal com este Such Brave Girls (disponível na Filmin a partir de amanhã), que conta com a própria irmã como coprotagonista. Produzidas pela cada vez mais conceituada A24, as manas com apelidos diferentes (Sadler é nome artístico) juntam-se assim ao cada vez mais revigorante panorama de talento feminino britânico na ficção televisiva, que vai do Fleabag, de Phoebe Waller-Bridge, ao Extraordinária, de Emma Moran. Agora acrescente-se a ambos uma dose extra de desconforto...
Com seis episódios de 25 minutos, que se assemelham a shots de humor incorreto, a série não mostra sequer respeito por introduções ou inícios formais, dando as boas-vindas ao espectador já em pleno andamento, com uma cena corriqueira entre mãe e filha dentro do carro, que no fundo serve para nos ambientar de modo instantâneo ao registo sem freio.
A filha, interpretada pela própria Sadler, é Josie, uma jovem de 20 e tal anos que se autodefine pelos seus distúrbios do foro mental, trabalhando numa livraria a contragosto e vivendo com a mãe e a irmã, Billie (Lizzie Davidson, claro), que é um absoluto contraste de vivacidade, embora não menos desequilibrada. Digamos apenas que Billie está obcecadamente apaixonada por um rapaz tóxico (que não tem outro interesse por ela senão sexual), e trabalha num armazém de recreio infantil, para o qual se veste todos os dias de Bruxa Malvada do Oeste, com a cara pintada de verde.
Já a mãe destas meninas, Deb (Louise Brealey, com um calibrado génio de falsa desnaturada), vê-se sem alternativas senão arranjar um namorado com boa situação financeira, depois de ter ficado nas lonas quando o marido saiu de casa para ir comprar chá em saquetas e não voltou... passaram-se 10 anos.
Tudo isto soa muito a caricatura, sim, mas é preciso ter em conta que a escrita de Sadler apresenta sempre um miolo de verdade – até o facto de Davidson conhecer a experiência de trabalhar num espaço infantil, tal como a sua personagem; era o que fazia num sítio chamado Shrek’s Adventure, no South Bank de Londres, antes de a irmã a “salvar”.
Meu querido trauma
O segredo de Such Brave Girls reside nessa capacidade de enfrentar o lado muito pouco glamoroso da vida de duas jovens adultas, cuja química contém uma catarse invertida. Entenda-se: não há aqui lágrimas ou enunciado de drama que substitua um bom diálogo de idiotice sombria e milimétrica, com um toque de brilhantismo. E só entrando no espírito da proposta se consegue passar ileso por piadas à volta da morte, suicídio, sexo e aborto.
Uma proposta divertidamente genuína: afinal, tudo o que se vê e ouve parte da condição destas irmãs, que estão a enfrentar as suas vulnerabilidades e problemas mentais escarnecendo deles. Isto é, fazendo com que a adoração das personagens pelos seus traumas se transforme numa anedota interminável. Enfim, rir da entidade “eu” exige um destemor que não está ao alcance de toda a alma inventiva.
De resto, Sadler e Davidson são tão naturalmente disparatadas e orgânicas no jogo narcísico em dueto que parece mentira ser a primeira vez que contracenam, ou que têm uma experiência como atrizes. Até por isso, Such Brave Girls vinga enquanto prova de uma ferocidade humorística que nasce da pele de quem representa e não se acanha perante um mundo cultural hipersensível, onde dar primeiros passos artísticos requer uma ousadia controlada. Em entrevista à BBC, a criadora e atriz disse mesmo que estava “entediada de ver séries com material muito seguro e simpático”.
Não é arriscado dizer, porém, que esta comédia extremamente desagradável chega a bom porto, nas suas múltiplas manifestações indecorosas. Está do lado da corrente afetiva daquelas três mulheres, que, entre conversas sobre cortar pulsos e depilar as pernas (para além de outros temas num patamar bastante superior do impróprio), são umas sobreviventes mais ou menos natas.
“Eu sei que é difícil, mas à medida que envelheces, aprendes a amar com menos coração. Cada vez menos, até que finalmente não reste mais nada”, diz a mãe Deb, como conselho superlativo para a vida, que mostra o tom de malícia terna da série.
E chegados ao fim dos rápidos seis episódios, percebemos que a dinâmica entre elas tem o seu quê de familiar no contexto da ficção britânica – ainda que a escrita de Kat Sadler sobressaia, na medida em que a sua mente depressiva tem um modo brutal de fazer terapia. Aguarda-se já a segunda temporada.
O segredo de Such Brave Girls reside nessa capacidade de enfrentar o lado muito pouco glamoroso da vida de duas jovens adultas, cuja química contém uma catarse invertida.