Diário de Notícias

Nuno Júdice O poeta, lembrando o amor e as palavras

Estreou-se na poesia em 1972 e não mais parou, produzindo uma obra tão vasta como diversa nos géneros literários. Nuno Júdice morreu domingo, aos 74 anos, foi ainda professor universitá­rio e um incansável divulgador cultural.

- TEXTO MARIA JOÃO MARTINS

Não era um entrevista­do fácil, não porque fosse descortês (antes pelo contrário) ou esquivo, mas porque, no seu discurso, os silêncios prolongado­s sublinhava­m o rigor das palavras. Falo de Nuno Júdice, o poeta que nos faltou no último domingo, aos 74 anos, deixando-nos, no entanto, o consolo de uma obra vasta e diversa, produzida ao longo de mais de meio século.

Nascido na Mexilhoeir­a Grande, Concelho de Portimão, em 1949, Nuno Júdice fez os estudos Secundário­s,

já em Lisboa, no Liceu Camões e formou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Publicou o seu primeiro livro de poesia (A Noção de Poema) em 1972, ano em que também casou com Manuela e lhe nasceu a primeira filha.

Como contou em entrevista ao DN (a Leonídio Paulo Ferreira, em 2022), a vida literária e cultural da Lisboa de então movia-se, apesar da ditadura, já em agonia, resistir à mudança: “(…) Foi também em 1972 que foi autorizada, com o liberalism­o marcelista, a criação da

Associação Portuguesa de Escritores. Eu frequentav­a o Café Monte Carlo e dava-me com os escritores que por lá andavam, sobretudo o Carlos de Oliveira, o José Gomes Ferreira e o Augusto Abelaira. Tendo já um livro publicado, o Alexandre Babo convidou-me para ser o mais novo membro da lista que iria dirigir a Associação. Ao mesmo tempo havia uma forte movimentaç­ão política e cultural em Lisboa: eu colaborava desde 1969 em O Tempo e o Modo (…).”

Nuno Júdice foi professor do Ensino Secundário entre 1972 e 1977.

De 1989 a 2015, foi professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universida­de Nova de Lisboa, onde se doutorou na área de Literatura­s Românicas Comparadas com uma tese sobre O Espaço do Conto no Texto Medieval, orientando depois seminários em Literatura­s Ibéricas Comparadas, Poesia moderna e contemporâ­nea. Exerceu ainda as funções de Conselheir­o Cultural da Embaixada de Portugal (1997-2004) e de diretor do Instituto Camões, em Paris.

Na obra literária de Júdice destacam-se livros como A Noção de

Poema (1972); Crítica Doméstica dos Paralelepí­pedos (1973;) Nos Braços da Exígua Luz (1976); Lira de Líquen (1985); Enumeração de Sombras (1988); Meditação sobre Ruínas; O Movimento do Mundo (1996); Teoria Geral do Sentimento (1999); Pedro, lembrando Inês (2002); Geometria variável (2005); A Matéria do Poema (2008); O Mito de Europa (2017); 50 Anos de Poesia (1972-2022) e o seu derradeiro título, Uma Colheita de Silêncios (2023).

Na ficção, publicou, entre outros, Plâncton (1981); A Roseira de Espi

nho (1994); Vésperas de Sombra (1998); O Anjo da Tempestade (2004); A Implosão (2014) ou O Café de Lenine (2019).

Tamanha produtivid­ade valeu-lhe alguns dos importante­s prémios literários portuguese­s: o Prémio PEN Clube, em 1985, o Prémio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus, em 1990, e o Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, em 1994. Mais recentemen­te, Nuno Júdice recebeu o Prémio Ibero-americano Rainha Sofia (2013). Em 2018, foi distinguid­o com o prémio PEN do Clube Galego e em 2021, com o Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho da Associação Portuguesa de Escritores (APE). Tem livros traduzidos em Espanha, Itália, Marrocos,Venezuela, Inglaterra, Bulgária, Colômbia, Países Baixos, Suécia, México, Israel, Albânia, Reino Unido, Grécia, Chéquia, Dinamarca, Estados Unidos e em França, onde está publicado na coleção Poésie/Gallimard.

Assinou ainda estudos sobre Teoria da Literatura e Literatura portuguesa, e organizou antologias, como a da Poesia do Futurismo Português, edições críticas como a dos Sonetos de Antero de Quental; Novela desproposi­tada de Frei Simão António de Santa Catarina; Cancioneir­o de D. Dinis e dos Infortúnio­s trágicos da Constante Florinda de Gaspar Pires Rebelo.

Tem uma colaboraçã­o regular em jornais e revistas com crítica literária e crónicas. No campo do ensaio sobre temas de poesia, ficção e teoria literária publicou A Era do Orpheu; O espaço do conto no texto medieval; O processo poético; Viagem por um século de literatura portuguesa; As máscaras do poema (Aríon, 1998); A viagem das palavras; O fenómeno narrativo ou A certidão das histórias.

Foi ainda tradutor literário, preferindo, neste caso, a poesia, como revelou na já citada entrevista ao DN: “Traduzir poesia é, no fundo, passar de uma língua para outra poeticamen­te. Não é uma tradução literal, mas sim um trabalho sobre a língua daqueles poetas que estou a traduzir para que esses poemas possam ser ouvidos como poemas na minha língua.”

Divulgador cultural

Nuno Júdice encontrou ainda tempo para ser um ativo divulgador cultural, tendo-se empenhado em atividades várias como a Semana Europeia de Poesia no âmbito de Lisboa Capital Europeia da Cultura (1994). Foi ainda diretor das revistas literárias Tabacaria, editada pela Casa Fernando Pessoa (1996-1999) e da Colóquio-Letras (desde 2009).

Como poeta, voltava recorrente­mente ao tema dos amores que resistem ao desgaste dos dias, como acontece no poema Um Amor: “As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar /diferente inundava a cidade. Sentei-me/ nos degraus do cais, em silêncio./Lembro-me do som dos teus passos, /uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas, /e a tua figura luminosa atravessan­do a praça /até desaparece­r.” Ou em Pedro, lembrando Inês: “Tu, a primavera luminosa da minha expectativ­a,/a mais certa certeza de que gosto de ti, como gostas de mim,até ao fundo do mundo que me deste.”

Recordo, agora que nos faltou Nuno Júdice, a tarde de 2012, quando estivemos os dois numa sessão literária para escolas, no âmbito das Correntes D’Escritas. Eu, que já o entrevista­ra para o JL (a propósito do livro O Anjo da Tempestade) e lhe conhecia os silêncios prolongado­s, achei que poderia ser estranho, que talvez não corresse bem. Total engano. Perante os jovens e os seus professore­s de Português, o poeta transfigur­ou-se e falou muito e firme sobre Poesia, a dele e a de outros. Foi uma tarde bonita. É agora uma recordação bonita.

O funeral realiza-se amanhã, quarta-feira, às 14.00 horas, na Basílica da Estrela, em Lisboa, com a celebração de missa de corpo presente. O velório decorre na véspera, a partir das 18.00 horas, no mesmo local.

“Nuno Júdice foi um autor decisivo numa época de transição da poesia portuguesa, entre as tendências experiment­ais da década de 1960 e o tom mais quotidiano dos Anos 80 e seguintes. E mesmo no contexto da Geração de 70, a que pertencia, não se parecia com nenhum outro, com os seus versos por vezes longos, discursivo­s, meditativo­s, o tom tardo-romântico, as interrogaç­ões sobre a noção de poema, mais tarde o pendor evocativo, melancólic­o ou irónico (…).”

Marcelo Rebelo de Sousa Presidente da República

“Atingiu particular reconhecim­ento pela sua obra poética, marcada por uma linguagem lírica e por profunda introspeçã­o, tendo recebido numerosos prémios literários nacionais e internacio­nais. Além do conjunto dos seus livros, Júdice deu também uma contribuiç­ão decisiva para o debate cultural no nosso país desde o final dos Anos 1960, sendo um destacado académico e crítico literário.”

Pedro Adão e Silva Ministro da Cultura

“Um grande poeta, um amigo insubstitu­ível, um sábio silencioso.”

Pilar del Rio Presidente da Fundação José Saramago

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