Para redescobrir a arte da ficção
Foi em 1959 que surgiu a primeira edição de O Cavaleiro Inexistente. Agora editado entre nós, o romance de Italo Calvino projeta-nos num universo medieval cujos ecos contemporâneos têm tanto de perturbante como de divertido.
Neste mundo dominado pelas mensagens televisivas, há concursos ditos de cultura geral em que alguns participantes, sobretudo os mais jovens, não sabendo responder a determinada pergunta, explicam: “Eu nesse tempo ainda não tinha nascido…” O que significa, no mínimo, que as pessoas que o dizem consideram, porventura acreditam, que a História do mundo começou com a sua fundamental contribuição para os índices de natalidade. Podemos, por isso, supor que um romance como O Cavaleiro Inexistente (agora lançado pela D. Quixote, com tradução de Fernanda Ribeiro) lhes surgirá como um objeto de insuperável anacronismo.
De facto, Italo Calvino (1923-1985) publicou-o em meados do século passado (a 1.ª edição data de 1959), numa época bem diferente, sem telemóveis, nem filmes da Marvel a fazer barulho nas salas de cinema. Ainda por cima, o escritor italiano atreve-se a dissertar sobre a época dos cavaleiros medievais, esse tempo em que, para tornar tudo isto ainda mais absurdo, nem sequer o autor deste texto era nascido… Enfim, ninguém é perfeito.
Convenhamos que, na sua bem disposta inocência, os militantes do tempo presente terão as suas razões. Acontece que, para complicar as coisas, Calvino recusa-nos aquele mínimo de segurança histórica que nos leva a exaltar uma qualquer série televisiva, exclamando: “Ah! A atriz que faz de Princesa Diana é muito parecida com ela!” Aqui não encontramos nada disso. Pior um pouco: a figura central, de seu nome Agilulfo, é mesmo, como diz o título, “inexistente”.
Logo nas primeiras páginas, quando confessa a sua inexistência ao imperador Carlos Magno, este protesta: “Ora essa! (…) Temos agora nas nossas forças um cavaleiro que não existe. Deixa ver.” E assim faz o bravo soldado: “Agilulfo ainda pareceu hesitar. Depois, com a mão firme, mas lenta, levantou a viseira. O elmo estava vazio. Na armadura branca de irisada cimeira não estava ninguém.”
“Reinar e guerrear”
O imperador, importa acrescentar, tinha um apurado sentido político e formula a pergunta que importava: “E como fazeis para prestar serviço, se não existis?” A resposta de Agilulfo não podia ser mais genuína: “Com a força de vontade e a fé na nossa causa!”. De tal modo que a admiração de Carlos Magno fica conquistada: “Sim senhor, bem dito. É assim que se cumpre o dever. Bem, para um homem que não existe, tendes bom aspeto.”
Tudo isto para recordarmos que estamos perante um exemplo modelar de um modo de construir narrativas que, em boa verdade, e para não recuarmos ainda mais na memória dos séculos e dos milénios, já Miguel de Cervantes (1547-1616) praticava com alegria no seu Dom Quixote. A saber: propor ao leitor um pacto de cumplicidade com os artifícios da escrita, reconhecer que um romance não se confunde com um noticiário televisivo e acreditar no “impossível” que o autor se propõe partilhar connosco.
Se necessitarmos de um apoio histórico para justificar tal aparato, então citemos o poeta e filósofo inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), recordando que ele cunhou a expressão em que se enraíza a mui nobre arte da ficção: suspension of disbelief (à letra: “suspensão da descrença”), ou seja, a aceitação tácita das premissas da ficção de modo a desfrutar a sua lógica interna, acedendo também aos seus enigmáticos prazeres.
O Cavaleiro Inexistente move-se, assim, num território visceralmente bélico. Sem metáforas rebuscadas, a política faz-se através da guerra, a guerra é o gesto político por excelência: “Reinar e guerrear, guerrear e reinar, sem tréguas nem descanso” – eis a agenda de Carlos Magno e dos seus fiéis servidores, todos tocados pelo desejo de aceder à Sagrada Ordem dos Cavaleiros do Graal.
O real e o virtual
Chegados aqui – quero eu dizer, logo nas primeiras páginas do romance –, não podemos deixar de reconhecer que, com um misto de precisão e pudor, Calvino nos vai sugerindo que a sua saga medieval talvez não seja estranha ao tempo em que a lemos. Há avisos do narrador (será um homem ou uma mulher?): “Ainda era confuso o estado das coisas do mundo, na Ida
Italo Calvino de Média, onde se desenrola esta história. Não era raro ir-se de encontro a nomes, a pensamentos, a formas, a instituições, que não correspondia a nada de real.”
Afinal, como se prova, o virtual é uma invenção muito antiga. A ponto de sermos desafiados a questionar a mitologia dos heróis que, enredados no turbilhão medieval, lutavam em nome de uma utopia política ou religiosa (quase sempre política “e” religiosa): “A cavalaria é uma bela coisa, sabe-se, mas os cavaleiros são uma cambada de estúpidos, habituados a cumprir altos feitos, mas por atacado, e quando isso resulta tanto melhor.” Até porque as regras que juraram seguir são encaradas como uma vantagem que nunca passou de moda: “Poupam-lhes o trabalho de pensar.”
Os nomes que circulam pela escrita de Calvino definem uma bizarra promessa de aventura: além de Agilulfo, cruzamo-nos com Rambaldo, Gurdulu (que alguns chamam Omobó, outros Martinzul), Bradamante, Torrismundo… Através de um jogo de calculada ambiguidade, são também outras tantas formas de sugerir que tão invulgares identidades não os afastam de nós, antes parecem aproximá-los do nosso mundo, das guerras que o devastam, da inteligência cansada que tenta contrariar o crescimento da estupidez militante.
O Cavaleiro Inexistente é o derradeiro título da trilogia Os Nossos Antepassados iniciada com O Visconde Cortado ao Meio (1952) e O Barão Trepador (1957). Dizer que a sua simbologia permanece atual, perturbante e insolitamente divertida não será o mesmo que “associar” as suas personagens a figuras da nossa contemporaneidade. O que mais conta é o facto de a escrita se reafirmar como exercício capaz de nos levar a interrogar a suposta transparência do tempo em que se faz a nossa história. No limite, talvez encontremos uma inesperada lição moral: a Idade Média ainda não acabou.