Diário de Notícias

Às armas (Gusto e os rufias)

- Rui Frias Editor do Diário de Notícias

Ultimament­e tenho-me lembrado várias vezes do meu amigo Gusto, com quem partilhei secretária e muitas aventuras de recreio na escola primária. O Gusto, como lhe chamávamos, era o diminutivo de Augusto, um rapaz enorme, no coração e no tamanho. Mais alto e encorpado do que os demais da sua idade, o Gusto era uma força bruta embrulhada numa sensibilid­ade rara, incapaz de se impor pelo tamanho dos seus braços, mas adorado pela sua personalid­ade alegre, bondosa, fraterna. Aquilo a que chamamos um amigalhaço.

Como em todas as escolas, na minha não faltava também um grupo de rufias, como eram tratados então, na década de 1980, os bullies de hoje. Os rufias, tais como os bullies, eram os que gostavam de se armar em valentões, meter-se com os outros só porque sim, dar-lhes cachaços a cada passagem, fazer-lhes rasteiras em pleno recreio, roubar-lhes o lanche uma e outra vez, invadir o campo de futebol e expulsar quem lá chegara primeiro, gozar com todos os que sentem de alguma forma diferentes: o gordo, o magro, o pobre, o estrangeir­o, o que usa óculos, o mais sensível... Como o Gusto, aquela montanha humana incapaz de fazer mal a uma mosca.

Durante meses a fio naquele ano letivo o Gusto virou a cara às inúmeras partidas. Sorria tranquilo, com a sua paciente superiorid­ade, e dizia-nos para não nos preocuparm­os com ele, que estava tudo bem. Mas um dia a paciência do Gusto esgotou-se. Naquele dia ele chegou à escola com a bola nova que o pai lhe tinha comprado, uma Adidas Tango Mundial que tinha sido a bola oficial do Campeonato da Europa daquele ano, em França, num verão que passáramos colados à TV a ver as aventuras dos nossos primeiros ídolos de infância, Chalana e Jordão. Naquele dia, quando tínhamos apenas começado a recriar ali, no campo da escola, o França-Portugal do verão anterior com o entusiasmo estampado na cara do Gusto, bola na mão, a colocá-la no centro para o pontapé de saída, os rufias entraram em campo e resolveram rebentar a bola nova para acabar com a brincadeir­a.

Foi uma má decisão. Naquele momento, a fúria do Gusto ficou do seu tamanho e o rapaz sensível, tolerante, pacífico deixou os três rufias estendidos no chão “virados ao contrário”. A partir daquele dia, os rufias não deixaram de ser rufias, mas nunca mais se meteram com o Gusto. Felizmente para nós, que além da sua amizade passámos a contar também com a sua proteção.

Não me interprete­m mal. Não estou com esta memória a querer fomentar qualquer ambiente de violência, um olho por olho, dente por dente nas escolas onde, hoje, o bullying continua a ser uma realidade diária – há canais institucio­nais apropriado­s para tratar dessas situações e espera-se que funcionem. O que me fez recordar o Gusto foi mesmo o intrincado cenário geopolític­o mundial em curso e aquilo que parece um retrocesso civilizaci­onal, com uma parte do globo, que julgávamos já livre de guerras territoria­is e ameaças bélicas primárias, a ver-se na necessidad­e de repensar convicções globalista­s de uma paz e amor neoliberai­s e entrar de novo numa corrida às armas para se proteger dos rufias da ordem internacio­nal.

Na edição de segunda-feira, o Diário de Notícias dava conta de que os portuguese­s estão no topo (88%) dos defensores da permanênci­a na NATO, entre os 32 países da Aliança Atlântica, com uma parte significat­iva (43%) a apoiar mesmo um aumento dos gastos militares, que permita ir de encontro à meta dos 2% do PIB estabeleci­da pela Cimeira de Gales há dez anos – e que Portugal ainda está longe de cumprir.

Sabemos bem (ou a maioria de nós, vá) neste pequeno retângulo à beira-mar que a nossa segurança externa depende muito da força que o nosso amigo Gusto (NATO) demonstre face às ameaças dos rufias externos. Na Europa, que durante décadas dormiu à sombra dos músculos do amigo norte-americano, despertou-se também para a necessidad­e de mostrar corpo militar perante a ameaça real do rufia de Moscovo e a perspetiva aterradora de voltar a ver um outro rufia sentar-se na cadeira do poder lá do outro lado do Atlântico.

Um relatório do Instituto Internacio­nal de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), publicado em 2023, já evidenciav­a bem como a Europa era a região mundial que mais aumentara o investimen­to em Defesa no ano anterior, cerca de 13%, aumentando também em 47% a importação de armas quando comparado o período 2013-17 com o de 2018-2022, que já englobava o início da agressão russa na Ucrânia. E prevê-se que esse investimen­to tenha de acelerar ainda muito mais, para fazer face ao atraso registado.

A nova estratégia europeia de Defesa apela até a uma modificaçã­o das regras do Banco Europeu de Investimen­to (BEI) para que este financie fabricante­s de armamento, como noticiava esta terça-feira o El País, dando conta de que 14 líderes europeus escreveram uma carta à presidente do grande braço financeiro da UE, Nadia Calviño, urgindo-a a compromete­r-se mais com o financiame­nto da indústria europeia de Defesa.

Mais de 30 anos depois do fim da Guerra Fria, a corrida ao armamento está de volta, em força, ao tabuleiro internacio­nal, fracassado o multilater­alismo e a diplomacia mundial. E a Europa, desta vez, não pode apenas ficar a ver. Claro que podemos questionar se torrar milhares de milhões em material perigoso era aquilo que o mundo mais precisava numa altura em que se debate com ameaças existencia­is como as alterações climáticas, que requeriam de todos a lucidez para trabalhar em conjunto.

Mas todos sabemos, desde o recreio da escola, que os rufias não entendem outra linguagem que não a da força. Só recuam quando realizam que, pela frente, têm um Gusto que os pode derrubar. E ninguém quererá viver num mundo refém de rufias que passam os intervalos a ameaçar com a bomba nuclear.

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