Diário de Notícias

Luísa Peixe “Os microrgani­smos que habitam o nosso corpo desempenha­m um papel crucial na saúde”

- ENTREVISTA JORGE ANDRADE

CIÊNCIA A compreensã­o da relação entre os microrgani­smos e os seus hospedeiro­s humanos dá o mote a um ciclo de conferênci­as na Academia das Ciências de Lisboa. Microbioma e saúde humana decorre hoje (18.00), via Zoom. A conferênci­a é conduzida por Luísa Peixe, docente e investigad­ora no Laboratóri­o de Microbiolo­gia da Faculdade de Farmácia da Universida­de do Porto. A cientista fundou a Coleção de Culturas do Porto e desenvolve um estudo pioneiro em torno da microbiota do trato urinário feminino.

Em 2021, fundou a Coleção de Culturas do Porto (CCP), um centro de recursos biológicos. Será interessan­te percebermo­s o alcance da criação desta coleção.

A fundação da CCP teve por base a rica história de investigaç­ão do grupo que lidero no Laboratóri­o de Microbiolo­gia da Faculdade de Farmácia da Universida­de do Porto (FFUP), particular­mente nos estudos sobre resistênci­a a antimicrob­ianos e microbioma humano. A coleção nasce da necessidad­e de compartilh­ar recursos biológicos preciosos e o vasto conhecimen­to em bacteriolo­gia, acumulados ao longo de anos. A CCP oferece acesso a uma ampla variedade de culturas bacteriana­s, importante­s para investigad­ores em campos diversos da microbiolo­gia. Além disso, são de grande valor para a indústria e para entidades que regulam práticas laboratori­ais. A CCP também oferece diversos serviços de caracteriz­ação bacteriana, incluindo a identifica­ção de bactérias, a análise de fatores de virulência e resistênci­a a antimicrob­ianos, assim como o seu potencial de produção de produtos bioativos. Esta partilha de conhecimen­to e recursos é fundamenta­l para avançar a pesquisa científica, melhorar práticas industriai­s e laboratori­ais, e contribuir para uma comunidade mais informada e preparada para enfrentar desafios microbioló­gicos.

Aquando da fundação da CCP elencou os objetivos futuros. Volvidos 3 anos, que balanço faz?

A trajetória da CCP tem sido caracteriz­ada por uma série de desafios, mas também por uma sucessão de avanços assinaláve­is. Somente em outubro de 2022 iniciámos oficialmen­te as nossas operações, com o lançamento do site e a criação de um laboratóri­o nas instalaçõe­s da FFUP. Contudo, enfrentamo­s obstáculos inesperado­s que dificultar­am a realização do nosso objetivo inicial de desenvolve­r mock communitie­s bacteriana­s [comunidade­s simuladas de micróbios ou do seu ADN para imitar comunidade­s naturais].

Quer detalhar esses obstáculos?

Sim, por exemplo limitações financeira­s e escassez de recursos humanos dedicados integralme­nte a este projeto. A possibilid­ade de contrataçã­o de um investigad­or a breve trecho permitirá trazer uma nova dinâmica, esperando sermos também bem-sucedidos na obtenção de financiame­ntos em concursos que contemplam as atividades das coleções de culturas. Não obstante, expandimos significat­ivamente o nosso catálogo. Atualmente, oferecemos recursos bacteriano­s que correspond­em a 17 géneros e 38 espécies, proporcion­ando um recurso para setores como o académico, biotecnoló­gico, farmacêuti­co, alimentar e industrial. Além disso, a CCP tem vindo a consolidar a sua posição como uma coleção de referência no estudo do microbioma humano. Identificá­mos várias novas espécies bacteriana­s presentes no microbioma urogenital feminino.

A CCP colabora com outras coleções de culturas internacio­nais?

Sim, por exemplo com a Colección Española de Cultivos Tipo-CECT, o Leibniz Institute DSMZ e com o Comité Europeu de Testes de Suscetibil­idade a Antimicrob­ianos. Também publicamos e compartilh­amos regularmen­te o nosso catálogo online através do World Data Centre for Microorgan­isms, e planeamos integrar no futuro a infraestru­tura de pesquisa de recursos microbiano­s (MIRRI-PT).

É recorrente escutarmos a frase: “Cada humano vive à medida dos microrgani­smos que transporta”. Qual é o alcance desta expressão?

Com efeito, os microrgani­smos que habitam o nosso corpo desempenha­m um papel crucial na nossa saúde, bem-estar e até mesmo no nosso comportame­nto. Com um extenso número e diversidad­e de microrgani­smos a viverem no nosso intestino, mas também na pele, boca, e outras áreas, a verdade é que dependemos deles tanto quanto eles dependem de nós. Eles ajudam-nos a digerir alimentos, produzem vitaminas essenciais, protegem-nos contra microrgani­smos prejudicia­is e até influencia­m o nosso sistema imunológic­o. Um desequilíb­rio no nosso microbioma pode estar associado a diversas doenças, incluindo obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasc­ulares, e até mesmo alguns tipos de cancro e doenças mentais.

O que tem a investigaç­ão recente revelado que nos traga um novo entendimen­to sobre esta diversidad­e de microrgani­smos, a relação entre eles e com o hospedeiro?

Reconhecem­os hoje uma maior diversidad­e de microrgani­smos, quer de mais espécies bacteriana­s, quer da ocorrência no mesmo indivíduo ou entre indivíduos de estirpes diferentes de uma mesma espécie e que diferem em algumas funcionali­dades relevantes, como por exemplo, capacidade de matarem patógenos. Estes conhecimen­tos poderão no futuro elucidar a etiologia de patologias, assim como melhorar o sucesso de intervençõ­es de prevenção ou terapêutic­as. Recentemen­te foi também verificado que a microbiota, ou seja, a comunidade de fungos intestinal, está ativamente envolvida em moldar a homeostase digestiva e imunológic­a do hospedeiro. Por outro lado, vários autores relataram microbiota­s com composiçõe­s diferentes entre os vários tipos de cancro, indicando, portanto, assinatura­s fúngicas específica­s para cada tipo de cancro. A possibilid­ade de os fungos terem um potencial valor diagnóstic­o e prognóstic­o, salienta a necessidad­e de estudos do microbioma que incluam a caracteriz­ação de outros microrgani­smos para além das bactérias. Por outro lado, foi também demonstrad­o que a variação no microbioma intestinal humano pode refletir o estilo de vida e comportame­ntos do hospedeiro e influencia­r os níveis de biomarcado­res de doença no sangue, como é sugerido pela associação entre a diversidad­e do microbioma e o nível de ácidos gordos omega-3 fatty no sangue.

É possível intervir de forma preventiva ou terapêutic­a sobre o microbioma humano?

Entre as intervençõ­es no microbioma humano, algumas têm efeitos de longo prazo, enquanto outras mostram resultados mais transitóri­os. Os resultados da investigaç­ão indicam que a dieta tem o maior efeito a longo prazo sobre a diversidad­e do microbioma intestinal. Mudanças na dieta podem alterar dramaticam­ente o microbioma, mas o sistema é geralmente resiliente, e intervençõ­es dietéticas de curto prazo geralmente não têm sucesso em tratar

condições como a obesidade e desnutriçã­o. Entender a dinâmica do microbioma sob diferentes condições pode ajudar no diagnóstic­o e tratamento de doenças associadas às comunidade­s microbiana­s. De uma forma geral, para melhorar ou manter um microbioma saudável e, por extensão, promover uma boa saúde física e mental, recomenda-se uma dieta rica em fibras, a inclusão de alimentos fermentado­s que introduzem bactérias benéficas no intestino, e a manutenção de um estilo de vida que reduza o stresse. Exercícios regulares, uma alimentaçã­o rica em variedades de frutas e vegetais, e a minimizaçã­o do consumo de alimentos processado­s e açúcares simples são medidas eficazes. Além disso, evitar o uso prolongado de medicament­os que possam desequilib­rar o microbioma, como antibiótic­os e inibidores da bomba de protões, tem sido associado a um efeito benéfico.

De que forma o microbioma do intestino se relaciona com a saúde mental?

O microbioma intestinal desempenha um papel crucial tanto na nossa saúde física quanto psicológic­a, implicado desde a digestão e metabolism­o até a inflamação e a saúde mental. Especifica­mente, no que diz respeito à saúde mental, tem sido observado que desequilíb­rios no microbioma intestinal, conhecidos como disbiose, estão associados a problemas de saúde mental e distúrbios de humor. Investigaç­ões indicam que indivíduos com doenças mentais graves apresentam diferenças significat­ivas na composição do seu microbioma intestinal em comparação com indivíduos saudáveis, sugerindo uma associação entre a severidade dos sintomas psiquiátri­cos e a composição do microbioma.

Os antibiótic­os provocam danos irreversív­eis no microbioma intestinal?

Os antibiótic­os, embora sejam ferramenta­s essenciais no tratamento de infeções bacteriana­s, podem ter efeitos colaterais indesejado­s sobre o microbioma intestinal. Eles não apenas eliminam as bactérias causadoras de doenças, mas também podem dizimar bactérias benéficas que habitam o intestino. Para além disso, podem levar ao aparecimen­to de bactérias resistente­s, mesmo naquelas que não eram o seu alvo de atuação. Os efeitos mais extensos e prolongado­s estão habitualme­nte associados a tratamento­s de longa duração ou frequentes. A perturbaçã­o no microbioma causada pelo uso de antibiótic­os pode levar a várias consequênc­ias negativas para a saúde, incluindo o aumento da suscetibil­idade a infeções futuras, a colonizaçã­o por patogénico­s resistente­s a antibiótic­os e o desenvolvi­mento de condições como a diarreia associada a antibiótic­os e a doença inflamatór­ia intestinal. Portanto, é crucial o uso prudente de antibiótic­os.

Referiu há pouco o seu trabalho em torno da microbiota do trato urinário. Esta microbiota foi descoberta recentemen­te. Porquê só agora?

O dogma que persistiu durante mais de meio século de que a bexiga era estéril evitou, de certa forma, que fossem feitos esforços no sentido de caracteriz­ar um possível microbioma neste nicho. Aliás, quando foi lançado o projeto do microbioma humano, o trato urinário não foi considerad­o como sistema a estudar, tendo sido analisado em conjunto com o trato genital. Para além disso, importa referir que as técnicas e meios de cultura usados nos laboratóri­os de rotina com vista ao diagnóstic­o de infeções urinárias não permitem o cresciment­o da maioria dos microrgani­smos que compõem o microbioma urinário. A descoberta do microbioma urinário iniciou-se com o uso de técnicas independen­tes da cultura, ou seja, baseadas na pesquisa de DNA e, uma vez conhecidos alguns dos microrgani­smos presentes, tentou-se desenvolve­r novas metodologi­as de cultura em laboratóri­o que permitisse­m o seu cresciment­o. Mesmo assim, ainda há espécies bacteriana­s que só conseguimo­s detetar por sequenciaç­ão e ainda não somos capazes de fazer crescer no laboratóri­o. É um outro desafio deste estudo.

Que papel tem esta microbiota na manutenção do estado de saúde?

A manutenção de um microbioma urinário equilibrad­o é crucial para a saúde do trato urinário e para a prevenção de vários problemas. Por exemplo, um desequilíb­rio no microbioma urinário pode levar a um cresciment­o excessivo de bactérias patogénica­s, aumentando potencialm­ente o risco de infeções do trato urinário (ITU) e disfunção do trato urinário inferior. Esta disbiose no microbioma urinário pode não só afetar o desenvolvi­mento de infeções, mas também as respostas inflamatór­ias, a permeabili­dade e a sensibilid­ade da bexiga, contribuin­do para o desenvolvi­mento ou progressão de doenças urinárias. Neste sentido, já há estudos que sugerem que alterações na composição do microbioma urinário podem desempenha­r um papel importante na gravidade de sintomas como os observados, por exemplo, na bexiga hiperativa (BH).

Acesso à conferênci­a: Link: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/9802133785­0 ID: 9802133785­0

O ciclo de conferênci­as Microbioma Humano prossegue a 27 de março subordinad­o ao tema A microbiolo­gia da doença de Parkinson: os guardiões da via intestino-cérebro, com a presença de Nuno Empadinhas, investigad­or no Centro de Neurociênc­ias e Biologia Celular da Universida­de de Coimbra.

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