Luísa Peixe “Os microrganismos que habitam o nosso corpo desempenham um papel crucial na saúde”
CIÊNCIA A compreensão da relação entre os microrganismos e os seus hospedeiros humanos dá o mote a um ciclo de conferências na Academia das Ciências de Lisboa. Microbioma e saúde humana decorre hoje (18.00), via Zoom. A conferência é conduzida por Luísa Peixe, docente e investigadora no Laboratório de Microbiologia da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto. A cientista fundou a Coleção de Culturas do Porto e desenvolve um estudo pioneiro em torno da microbiota do trato urinário feminino.
Em 2021, fundou a Coleção de Culturas do Porto (CCP), um centro de recursos biológicos. Será interessante percebermos o alcance da criação desta coleção.
A fundação da CCP teve por base a rica história de investigação do grupo que lidero no Laboratório de Microbiologia da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (FFUP), particularmente nos estudos sobre resistência a antimicrobianos e microbioma humano. A coleção nasce da necessidade de compartilhar recursos biológicos preciosos e o vasto conhecimento em bacteriologia, acumulados ao longo de anos. A CCP oferece acesso a uma ampla variedade de culturas bacterianas, importantes para investigadores em campos diversos da microbiologia. Além disso, são de grande valor para a indústria e para entidades que regulam práticas laboratoriais. A CCP também oferece diversos serviços de caracterização bacteriana, incluindo a identificação de bactérias, a análise de fatores de virulência e resistência a antimicrobianos, assim como o seu potencial de produção de produtos bioativos. Esta partilha de conhecimento e recursos é fundamental para avançar a pesquisa científica, melhorar práticas industriais e laboratoriais, e contribuir para uma comunidade mais informada e preparada para enfrentar desafios microbiológicos.
Aquando da fundação da CCP elencou os objetivos futuros. Volvidos 3 anos, que balanço faz?
A trajetória da CCP tem sido caracterizada por uma série de desafios, mas também por uma sucessão de avanços assinaláveis. Somente em outubro de 2022 iniciámos oficialmente as nossas operações, com o lançamento do site e a criação de um laboratório nas instalações da FFUP. Contudo, enfrentamos obstáculos inesperados que dificultaram a realização do nosso objetivo inicial de desenvolver mock communities bacterianas [comunidades simuladas de micróbios ou do seu ADN para imitar comunidades naturais].
Quer detalhar esses obstáculos?
Sim, por exemplo limitações financeiras e escassez de recursos humanos dedicados integralmente a este projeto. A possibilidade de contratação de um investigador a breve trecho permitirá trazer uma nova dinâmica, esperando sermos também bem-sucedidos na obtenção de financiamentos em concursos que contemplam as atividades das coleções de culturas. Não obstante, expandimos significativamente o nosso catálogo. Atualmente, oferecemos recursos bacterianos que correspondem a 17 géneros e 38 espécies, proporcionando um recurso para setores como o académico, biotecnológico, farmacêutico, alimentar e industrial. Além disso, a CCP tem vindo a consolidar a sua posição como uma coleção de referência no estudo do microbioma humano. Identificámos várias novas espécies bacterianas presentes no microbioma urogenital feminino.
A CCP colabora com outras coleções de culturas internacionais?
Sim, por exemplo com a Colección Española de Cultivos Tipo-CECT, o Leibniz Institute DSMZ e com o Comité Europeu de Testes de Suscetibilidade a Antimicrobianos. Também publicamos e compartilhamos regularmente o nosso catálogo online através do World Data Centre for Microorganisms, e planeamos integrar no futuro a infraestrutura de pesquisa de recursos microbianos (MIRRI-PT).
É recorrente escutarmos a frase: “Cada humano vive à medida dos microrganismos que transporta”. Qual é o alcance desta expressão?
Com efeito, os microrganismos que habitam o nosso corpo desempenham um papel crucial na nossa saúde, bem-estar e até mesmo no nosso comportamento. Com um extenso número e diversidade de microrganismos a viverem no nosso intestino, mas também na pele, boca, e outras áreas, a verdade é que dependemos deles tanto quanto eles dependem de nós. Eles ajudam-nos a digerir alimentos, produzem vitaminas essenciais, protegem-nos contra microrganismos prejudiciais e até influenciam o nosso sistema imunológico. Um desequilíbrio no nosso microbioma pode estar associado a diversas doenças, incluindo obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, e até mesmo alguns tipos de cancro e doenças mentais.
O que tem a investigação recente revelado que nos traga um novo entendimento sobre esta diversidade de microrganismos, a relação entre eles e com o hospedeiro?
Reconhecemos hoje uma maior diversidade de microrganismos, quer de mais espécies bacterianas, quer da ocorrência no mesmo indivíduo ou entre indivíduos de estirpes diferentes de uma mesma espécie e que diferem em algumas funcionalidades relevantes, como por exemplo, capacidade de matarem patógenos. Estes conhecimentos poderão no futuro elucidar a etiologia de patologias, assim como melhorar o sucesso de intervenções de prevenção ou terapêuticas. Recentemente foi também verificado que a microbiota, ou seja, a comunidade de fungos intestinal, está ativamente envolvida em moldar a homeostase digestiva e imunológica do hospedeiro. Por outro lado, vários autores relataram microbiotas com composições diferentes entre os vários tipos de cancro, indicando, portanto, assinaturas fúngicas específicas para cada tipo de cancro. A possibilidade de os fungos terem um potencial valor diagnóstico e prognóstico, salienta a necessidade de estudos do microbioma que incluam a caracterização de outros microrganismos para além das bactérias. Por outro lado, foi também demonstrado que a variação no microbioma intestinal humano pode refletir o estilo de vida e comportamentos do hospedeiro e influenciar os níveis de biomarcadores de doença no sangue, como é sugerido pela associação entre a diversidade do microbioma e o nível de ácidos gordos omega-3 fatty no sangue.
É possível intervir de forma preventiva ou terapêutica sobre o microbioma humano?
Entre as intervenções no microbioma humano, algumas têm efeitos de longo prazo, enquanto outras mostram resultados mais transitórios. Os resultados da investigação indicam que a dieta tem o maior efeito a longo prazo sobre a diversidade do microbioma intestinal. Mudanças na dieta podem alterar dramaticamente o microbioma, mas o sistema é geralmente resiliente, e intervenções dietéticas de curto prazo geralmente não têm sucesso em tratar
condições como a obesidade e desnutrição. Entender a dinâmica do microbioma sob diferentes condições pode ajudar no diagnóstico e tratamento de doenças associadas às comunidades microbianas. De uma forma geral, para melhorar ou manter um microbioma saudável e, por extensão, promover uma boa saúde física e mental, recomenda-se uma dieta rica em fibras, a inclusão de alimentos fermentados que introduzem bactérias benéficas no intestino, e a manutenção de um estilo de vida que reduza o stresse. Exercícios regulares, uma alimentação rica em variedades de frutas e vegetais, e a minimização do consumo de alimentos processados e açúcares simples são medidas eficazes. Além disso, evitar o uso prolongado de medicamentos que possam desequilibrar o microbioma, como antibióticos e inibidores da bomba de protões, tem sido associado a um efeito benéfico.
De que forma o microbioma do intestino se relaciona com a saúde mental?
O microbioma intestinal desempenha um papel crucial tanto na nossa saúde física quanto psicológica, implicado desde a digestão e metabolismo até a inflamação e a saúde mental. Especificamente, no que diz respeito à saúde mental, tem sido observado que desequilíbrios no microbioma intestinal, conhecidos como disbiose, estão associados a problemas de saúde mental e distúrbios de humor. Investigações indicam que indivíduos com doenças mentais graves apresentam diferenças significativas na composição do seu microbioma intestinal em comparação com indivíduos saudáveis, sugerindo uma associação entre a severidade dos sintomas psiquiátricos e a composição do microbioma.
Os antibióticos provocam danos irreversíveis no microbioma intestinal?
Os antibióticos, embora sejam ferramentas essenciais no tratamento de infeções bacterianas, podem ter efeitos colaterais indesejados sobre o microbioma intestinal. Eles não apenas eliminam as bactérias causadoras de doenças, mas também podem dizimar bactérias benéficas que habitam o intestino. Para além disso, podem levar ao aparecimento de bactérias resistentes, mesmo naquelas que não eram o seu alvo de atuação. Os efeitos mais extensos e prolongados estão habitualmente associados a tratamentos de longa duração ou frequentes. A perturbação no microbioma causada pelo uso de antibióticos pode levar a várias consequências negativas para a saúde, incluindo o aumento da suscetibilidade a infeções futuras, a colonização por patogénicos resistentes a antibióticos e o desenvolvimento de condições como a diarreia associada a antibióticos e a doença inflamatória intestinal. Portanto, é crucial o uso prudente de antibióticos.
Referiu há pouco o seu trabalho em torno da microbiota do trato urinário. Esta microbiota foi descoberta recentemente. Porquê só agora?
O dogma que persistiu durante mais de meio século de que a bexiga era estéril evitou, de certa forma, que fossem feitos esforços no sentido de caracterizar um possível microbioma neste nicho. Aliás, quando foi lançado o projeto do microbioma humano, o trato urinário não foi considerado como sistema a estudar, tendo sido analisado em conjunto com o trato genital. Para além disso, importa referir que as técnicas e meios de cultura usados nos laboratórios de rotina com vista ao diagnóstico de infeções urinárias não permitem o crescimento da maioria dos microrganismos que compõem o microbioma urinário. A descoberta do microbioma urinário iniciou-se com o uso de técnicas independentes da cultura, ou seja, baseadas na pesquisa de DNA e, uma vez conhecidos alguns dos microrganismos presentes, tentou-se desenvolver novas metodologias de cultura em laboratório que permitissem o seu crescimento. Mesmo assim, ainda há espécies bacterianas que só conseguimos detetar por sequenciação e ainda não somos capazes de fazer crescer no laboratório. É um outro desafio deste estudo.
Que papel tem esta microbiota na manutenção do estado de saúde?
A manutenção de um microbioma urinário equilibrado é crucial para a saúde do trato urinário e para a prevenção de vários problemas. Por exemplo, um desequilíbrio no microbioma urinário pode levar a um crescimento excessivo de bactérias patogénicas, aumentando potencialmente o risco de infeções do trato urinário (ITU) e disfunção do trato urinário inferior. Esta disbiose no microbioma urinário pode não só afetar o desenvolvimento de infeções, mas também as respostas inflamatórias, a permeabilidade e a sensibilidade da bexiga, contribuindo para o desenvolvimento ou progressão de doenças urinárias. Neste sentido, já há estudos que sugerem que alterações na composição do microbioma urinário podem desempenhar um papel importante na gravidade de sintomas como os observados, por exemplo, na bexiga hiperativa (BH).
Acesso à conferência: Link: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/98021337850 ID: 98021337850
O ciclo de conferências Microbioma Humano prossegue a 27 de março subordinado ao tema A microbiologia da doença de Parkinson: os guardiões da via intestino-cérebro, com a presença de Nuno Empadinhas, investigador no Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra.