Diário de Notícias

A sífilis durante a gravidez provoca lesões ósseas no feto: sífilis congénita do recém-nascido que ainda persiste atualmente, se bem que com menor frequência.”

- Ex-diretor-geral da Saúde franciscog­eorge@icloud.com

Se bem que os resultados das eleições tenham ofuscado a recente polémica surgida em torno do anonimato das pessoas com infeções transmitid­as por via sexual, considero ser oportuno retomar o assunto.

Assumo, desde já, ter tido responsabi­lidades na medida adotada, em 2015, que acabou com o envio dos nomes dos doentes para os delegados de saúde. O anonimato das pessoas com certas infeções sexualment­e transmitid­as passou a ser respeitado como regra geral. Foi uma decisão acertada.

Como o tema é vasto, será aqui resumido por partes.

Como se sabe, na Antiguidad­e, para os romanos, a deusa da beleza e do amor era Vénus. Por isso mesmo, as doenças associadas ao sexo são designadas como doenças venéreas. Neste sentido, a Medicina Moderna criou a disciplina de Venereolog­ia que, como especialid­ade médica, ficou ligada à dermatolog­ia. Ainda me lembro de tabuletas à porta das policlínic­as anunciarem o nome do médico e a indicação de “especialis­ta em doenças da pele e sífilis”.

No século XIX, a sífilis constituía a mais preocupant­e das doenças transmitid­as por via sexual. Na altura, era muito temida, porque não tinha tratamento eficaz e porque apresentav­a uma evolução crónica incurável, depois de um período de silêncio que podia chegar a 20 anos. As manifestaç­ões finais sifilítica­s incluem graves perturbaçõ­es neurológic­as e mentais. Calculava-se, então, que 20% dos doentes internados nos manicómios sofriam de demência de origem sifilítica.

Nessa época, a sífilis era uma imensa apreensão, de certa forma equivalent­e à Sida nos Anos 80 do século XX. A esse propósito, recordo-me da lição proferida por um professor meu da Faculdade ter dito que a sífilis era, por vezes, um “presente” de casamento na noite de núpcias quando um dos noivos estava infetado... Por outro lado, a sífilis durante a gravidez provoca lesões ósseas no feto: sífilis congénita do recém-nascido que ainda persiste atualmente, se bem que com menor frequência.

A primeira consulta especializ­ada foi criada, em 1897, no Hospital do Desterro, em Lisboa, pelo médico Thomaz de Mello Breyner (1866-1933) que dedicou atenção especial ao controlo das doenças venéreas. Apesar de todas as ações por ele conduzidas nesse tempo, a inexistênc­ia de antibiótic­os explicava as elevadas incidência e prevalênci­a de doenças por via sexual, bem como as manifestaç­ões tardias da sífilis.

Estranhame­nte, o médico austríaco Julius Wagner-Jauregg recebeu o Prémio Nobel, em 1927, pela “descoberta” de que a inoculação do paludismo nos doentes melhorava as manifestaç­ões de demência sifilítica. Tratamento inaceitáve­l na dimensão ética e de efeito terapêutic­o duvidoso no plano científico.

Só a partir de 1940, a penicilina iria modificar o panorama.

(Continua.)

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