A cor e a espiritualidade dos quadros de Manoel Quitério
Duas exposições do artista plástico brasileiro vão estar patentes em Lisboa. Manoel Quitério que deixou uma carreira consolidada em Recife para fazer um mestrado em Artes em Lisboa e continuar a criar.
Uma das constantes reflexões de Manoel Quitério versa sobre o pertencer – ou o não pertencer –, tema recorrente na própria dinâmica de ser um artista em terras estrangeiras.
Oartista plástico Manoel Quitério, 37 anos, está habituado a alturas e muita cor. Uma das suas especialidades é pintar grandes paredes, prédios de vários andares, com bastante cor e expressão, à vista de todos. Contudo, isso mudou.
Com uma sólida trajetória em Recife, cidade onde nasceu e cresceu, o brasileiro mudou-se para Lisboa em 2021, com o objetivo de tirar um mestrado em Artes. Os tempos eram outros. O vírus da covid-19 pairava. As rotinas não eram as normais. A situação mudou: não só o dia a dia do artista, mas também suas obras. Deixou o colorido das grandes superfícies para criar pinturas menores, com menos cores, que retrataram o momento em que o mundo vivia.
“Quando cheguei a Portugal, veio o choque de estar em Portugal durante a pandemia, sem conhecer ninguém e olhar para o Brasil e ver o que se passava por lá. Tive essa reação [artística] e, para mim, foi a única possível”, começa por dizer ao DN. O resultado desse período está na exposição Tentativas de Segurar o Céu, patente até 6 de abril, no Espaço Nowhere, em Lisboa.
Além da melancolia do momento escuro desse passado recente, as pinturas também trazem as cores das religiões de matrizes afro-indígenas brasileiras. Foi distante quase seis mil quilómetros de casa, que o brasileiro começou refletir sobre a sua própria relação com a religiosidade. “Para mim era algo um pouco proibido no Brasil no contexto de intolerância religiosa, e de ser uma religião ligada aos povos oprimidos. Foi aqui, em Portugal, que entendi essa força e vi que, na verdade, é um património e não algo que tem de ser escondido e que me traz mais coragem”, argumenta.
Apesar das cores e traços da religião, o artista vê essa questão muito mais além, como espiritualidade, não como uma instituição. “Quis mexer em algo mais humano do que numa religião específica. É mais sobre espiritualidade do que religião em si. Porque religião pode ser usada para dominar ou para afastar a pessoa da essência”, diz.
O artista acredita que as pinturas transmitem a espiritualidade, mas também uma certa pertença e ligação. “Eu trago nas obras o sagrado, algo que nos conecta a todos. Penso que o mundo tem essa necessidade de se ligar, principalmente quem é imigrante”, diz. “A arte é um trabalho de memória, certo? O povo lembra quem é. Quem lembra de onde vem, sabe para onde vai”, complementa.
Uma das constantes reflexões de Manoel Quitério versa sobre o pertencer – ou o não pertencer –, tema recorrente na própria dinâmica de ser um artista em terras estrangeiras. O artista está a tentar consolidar esta posição, com a ajuda de quem acredita na arte. O Espaço Nowhere, que sedia a exposição, foi cofundado pela também brasileira de Recife, Cristina Tejo. O espaço privilegia exposições de artistas imigrantes, como forma de resistência e apoio a quem busca expor o seu talento e visão de mundo na capital portuguesa.
Segunda exposição em Lisboa
Para o final do mês está já agendada uma segunda exposição de Manoel Quitério: Caminhos de Retorno, que estreia a 28 de março no Coletivo Amarelo, em Marvila, Lisboa. As obras expostas também foram criadas na altura da pandemia. São peças em escalas de preto, cinza e branco, de forma ainda mais reflexiva, utiliza a investigação que realiza no mestrado de artes que está a tirar, para retratar a fé e a história.
Além do marco de tempo, as pinturas também possuem laços comuns: as vivências do imigrante. “Eu vejo a arte como um momento de conexão, de cura, de botar a gente para a nossa própria essência, foi assim para estas duas exposições”, resume.
As obras do Caminhos de Retorno são uma ressignificação das cartas de Tarot com símbolos de fé suprimidos no processo colonial. O rei das cartas passa a ser um homem negro, brasileiro. O mago deixa de ser o Papa para ser o orixá Obaluaê (Deus das religiões afro-brasileiras associado à cura e saúde). As pinturas passam a ter uma cara mais multicultural, exatamente como é a sociedade. “Tem de caber todo mundo”, sublinha.
A curadoria da exposição, que estará aberta até 8 de junho, também é de Cristiana Tejo.