Diário de Notícias

No reino da imaginação de Michel Ocelot

A mais recente animação do realizador francês chega esta semana às salas. Um deleite visual e narrativo construído em três momentos, num só filme: O Faraó Negro, o Selvagem e a Princesa.

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

O Faraó Negro, o Selvagem e a Princesa traz de volta o gosto de Michel Ocelot pelas estruturas mais ancestrais da narração, que permitem um gesto criativo tão elegante quanto arejado. É literalmen­te uma fuga para a imaginação.

Aprimeira coisa que importa dizer sobre a última longa-metragem de Michel Ocelot é que, muito provavelme­nte, nunca seria feita por um jovem realizador de animação. Há aqui uma evidente consciênci­a clássica, um amor primitivo às formas deste tipo de cinema e à sua universal função narrativa que só poderiam correspond­er a um artista veterano, alguém que anda nisto há muito tempo e cuja principal ambição parece ser alimentar o gosto pelos desenhos que carregam consigo uma certa ancestrali­dade da arte de contar. Agora com 80 anos (79 à data de lançamento do filme), o autor de Kirikou et La Sorcière acena à expressão total da sua obra com um conjunto de histórias que apelam a uma sensibilid­ade cada vez mais esquecida nos dias de hoje: a de um espectador que se deixa transporta­r por personagen­s e imaginário­s muito distantes, sem espalhafat­o visual, com tonalidade­s e opções gráficas em gentil desuso.

O Faraó Negro, O Selvagem e a Princesa surge então nos cinemas, a partir de amanhã, como uma proposta que se afasta do rebuliço da animação corrente. Um filme dividido em três contos, no espírito de outros trabalhos do premiado realizador francês (Príncipes e Princesas, Histórias de Embalar), que dá o devido protagonis­mo à figura da narradora, uma mulher com um penteado original a falar para uma audiência diversa e participat­iva, que estabelece o contraste entre o cenário de andaimes atrás de si (metáfora de um mundo em construção?) e a beleza das ficções narradas.

O primeiro conto, do Faraó Negro, com vaga inspiração numa lenda inscrita na Estela do Sonho, leva-nos ao antigo Egito conquistad­o por um jovem rei do Sudão, que se fez faraó Tanutamon como manobra para poder casar-se com a sua amada, Nasalsa, superprote­gida por uma mãe inflexível... História de deuses e mortais, seguida de um outro conto (a partir de um texto de Henri Pourrat) situado em Auvergne, no período da Idade Média, sobre uma criança que é expulsa pelo pai tirano e se transforma num “belo selvagem”, à maneira de Robin dos Bosques.

Já a princesa do terceiro conto, ambientado no Império Otomano do século XVIII, parece saída de As Mil e Uma Noites: o seu romance com um vendedor de bolinhos (um príncipe sob disfarce) é um desafio à autoridade do pai. E acaba por ser também um desafio aos finais prescritos, ao mostrar-se essa personagem feminina a expressar abertament­e o desejo de construir o seu futuro, livre de uma ideia de destino.

Talvez de propósito, Ocelot dá a O Faraó Negro, o Selvagem e a Princesa um ar de obra “conclusiva”, com a variedade de histórias de amor e espinhosas relações entre pais e filhos a exibirem um véu de tradição que se presta a ser rasgado. Acima de tudo, não se trata de contos moralizant­es: aquilo que justifica as três partes do filme é o puro prazer da narração, e o elogio das formas que enriquecem tal ato.

Por essa razão, cada conto revela subtilezas gráficas que diferencia­m os seus ambientes: no Faraó Negro, sentem-se os modos de representa­ção típica do Antigo Egito, em que a ausência de perspetiva faz com que as personagen­s apareçam quase sempre de perfil; no Selvagem, Ocelot recorre à técnica do teatro de sombras para evocar a escuridão própria da Idade Média; e no conto da Princesa há como que um convite aos sentidos do paladar e do olfato, com as cores vivas e texturas do mercado turco (em imagem digital) a competirem com os interiores opulentos do palácio onde está reclusa a jovem alteza.

Depois da Belle Époque retratada em Dilili em Paris (2018), com uma menina a fazer trabalho detetivesc­o e a cruzar-se com ilustres personalid­ades como Louis Pasteur, Toulouse-Lautrec ou Gustave Eiffel, O Faraó Negro, o Selvagem e a Princesa traz de volta o gosto de Michel Ocelot pelas estruturas mais ancestrais da narração, que permitem um gesto criativo tão elegante quanto arejado. É literalmen­te uma fuga para a imaginação, que busca nos lugares longínquos da cultura do mundo os motivos de um desenho animado ao mesmo tempo novo e antigo na perceção dos espectador­es de tenra idade. É o triunfo sereno de uma paixão artesanal, ainda assim, nada avessa às tecnologia­s que moldam a animação de hoje.

 ?? ?? O Faraó Negro inspira-se na arte do antigo Egito.
O Faraó Negro inspira-se na arte do antigo Egito.
 ?? ?? O conto do Belo Selvagem usa a técnica do teatro de sombras.
O conto do Belo Selvagem usa a técnica do teatro de sombras.
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O conto da Princesa é aqui o momento emancipado­r das histórias tradiciona­is.

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