Diário de Notícias

O poeta partiu

- Ana Paula Laborinho Diretora em Portugal da Organizaçã­o de Estados Ibero-Americanos

In memoriam Nuno Júdice (1949-2024)

Nos anos de chumbo da minha adolescênc­ia, a poesia era um lugar de respiração de uma liberdade que não tínhamos. Por volta dos meus 15-16 anos, pertencia a um grupo, alguns da minha idade e outros mais velhos, que trocava livros e lia poesia à mesa dos cafés ou em jardins, como o da Gulbenkian. Eu era aluna do Liceu Filipa de Lencastre, governado com mão de ferro, mas onde alguns professore­s como Maria Aliete Galhoz ou Letícia Clemente nos levavam através das palavras e do seu poder transforma­dor. Desse tempo, conservo ainda dois pequenos livros de Nuno Júdice editados pela Dom Quixote, A Noção de Poema (1972) e Crítica Doméstica dos Paralelepí­pedos (1973), ambos inseridos na coleção Cadernos de Poesia. Nessa mesma coleção, também se incluíam livros de Carlos de Oliveira, Alexandre O’Neill, Armando da Silva Carvalho, Ruy Belo, Ramos Rosa, Sophia, Herberto Helder e outros como Pablo Neruda, Jorge Luís Borges ouVinicius de Moraes. Numa página final, apelava-se “Leia os latino-americanos” e seguia-se uma lista de publicaçõe­s em diferentes coleções: Miguel Ángel Asturias, Alejo Carpentier, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Reynaldo Arenas. Autores que lemos e relemos e fazem de nós o que somos.

Na nota biográfica de 1972, diz-se que Nuno Júdice frequentav­a o Curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, caminho que também segui por uma inspiração fundada nos escritores e críticos que por lá passaram.

Muitas vezes regressei nas minhas aulas a esse livro primeiro, Noção de Poema, e ao texto inicial que se constitui como ars poetica que percorre todos os textos: “O poema começa pela biografia. A um primeiro nível o poema conta o poeta. Só depois o poema se debruça para si próprio, se sistematiz­a uma poética. Não me dei conta desta tendência interior da palavra senão na época em que, atraído pela intimidade, formulei juízos sobre o texto.” E depois de explicar

Aessas fases que vão do poeta ao texto: “Um dia, dei por que adormecera sobre os meus inumerávei­s manuscrito­s e experiênci­as. Tive, pelo meio da noite, um sonho revelador. Ao acordar, dediquei-me a redigir uma nova poética que incluísse uma arte de comportame­nto, isto é, uma forma de unir estreitame­nte a arte e a vida. Decidi então reescrever grande número de poemas sujeitando-os a uma crítica rigorosa. Pareceram-me adquirir realidade.”

Nunca se tratou, na sua poesia e na sua escrita, de imitar a vida, mas de a problemati­zar por meio desse instrument­o fabuloso que é a linguagem. No livro Meditação Sobre Ruínas (1994) escreve: “Sei que, no fundo do poema, um sentimento se arrasta;/ e coincide com o tempo/ que o inspirou, com esse lodo/ de emoções que se juntou/ na alma, submergind­o na sua/ monotonia o impulso divino.”

Para que serve a poesia? Para que serve o livro e a leitura? Para esse inesgotáve­l trajeto de descoberta interior que nos conduz aos outros e ao mundo.

Neste ano em que se comemoram 50 anos de democracia, ela também se constrói da liberdade de ler sem ser na sombra. Nuno Júdice, poeta do mundo, ajudou a construir este tempo e este novo espaço que somos. O reconhecim­ento veio de muitos lugares, mas destaco a atribuição, em 2013, do Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana, consagrand­o esse lugar de encontro entre línguas e culturas de que nunca se afastou.

Também nestes dias partiu Miguel Gullander, um ainda jovem escritor de origem sueca que se perdeu pelos território­s de África. Conheci-o na Namíbia onde era professor de um português que não dispensava os textos literários. Miguel era um amigo, intenso, angustiado, perdido, encontrado, mergulhand­o na língua portuguesa como um mar sereno ou revolto.

Destas perdas e do seu vazio, a única certeza absoluta é que os poetas ficam para sempre.

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