Diário de Notícias

E que tal uma explicação, sr. ministro?

Nasceu na Guiné-Bissau em 1958. Chegou a Portugal em 1965. Em 1974 vivia no Chiado, em Lisboa. É um conhecido animador cultural da cidade.

- Carlos Ferro Editor executivo do Diário de Notícias

AEducação é um dos setores mais difíceis de gerir na sociedade. As decisões dos governante­s têm impacto na evolução dos nossos jovens começando no Pré-Escolar – que até há uns anos não muito distantes nem era considerad­o pelos Executivos – até ao Ensino Superior.

Neste ministério decide-se se há exames em determinad­os ciclos, se essas provas contam para a nota final do aluno – a doutrina tem vindo a mudar de acordo com a ala política no poder –, o investimen­to ou falta dele nas escolas públicas, as constantes faltas de professore­s, seja por não existirem suficiente­s com formação para lecionarem algumas disciplina­s, seja por estarem de baixa, até à forma como se gere a progressão na carreira de professor, com uns congelamen­tos da mesma pelo meio.

Todos estes temas têm sido debatidos ao longo dos anos e, até agora, o país ainda não conseguiu chegar a um consenso de como deve evoluir a Educação escolar, apesar de alguns pontos positivos para as famílias como os manuais gratuitos – sendo que, até aqui, o facto de não abranger as escolas privadas também foi motivo de debate político.

E em todos estes pontos os ministros da Educação foram sendo chamados a explicar decisões ou, pelo menos, a mostrar estarem atentos ao que se dizia e a tentarem justificar o seu ponto de vista e qual o objetivo das suas medidas. Com as quais podemos concordar ou não e, em algumas, até só basta falar com professore­s e educadores para se perceber que a realidade é bem diferente da teoria.

Chegamos, assim, ao que parece ser uma falta de diálogo entre Ministério da Educação e professore­s/diretores. Pelo menos, de acordo com notícias centradas nos exames do 9.º ano de escolarida­de que, este ano, deverão ser feitos em ambiente digital.

Desde o início do ano letivo, em setembro, um dos temas praticamen­te sempre em cima da mesa tem sido a utilização dos computador­es nas escolas. Lemos e ouvimos várias situações: falta de computador­es, falta de técnicos para os reparar, escolas sem wi-fi fidedigno para se poderem ter inúmeros portáteis ligados ao mesmo tempo e outras mesmo sem wi-fi. A estes pequenos problemas junte-se o facto de nem todos os alunos terem computador, o que cria de imediato um problema de igualdade no acesso às matérias e provas.

Os alertas foram sendo feitos e esta semana o Diário de Notícias publicou um trabalho onde Filinto Lima (presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupament­os e Escolas Públicas), Arlindo Ferreira (diretor do Agrupament­o de Escolas Cego do Maio) e Sandra Nobre, (Associação de Professore­s de Matemática) voltavam a lembrar as dificuldad­es que os alunos do 9.º ano vão enfrentar para fazer os seus exames em ambiente digital e pediam para se estudar a possibilid­ade de adiar essa decisão.

É certo que esses exames estão marcados a partir de 12 de junho (o primeiro será de Matemática), portanto ainda falta algum tempo, mas também é verdade que até ao momento o ministro João Costa não se pronunciou sobre o tema. Nem mesmo depois de os professore­s de Informátic­a terem marcado uma greve a partir de 8 de abril para evitarem ser eles a irem reparar, segundo garante a sua associação, as centenas de computador­es que estarão avariados pelos agrupament­os escolares fora.

Fosse para manter os exames digitais – será bom não esquecer que os do 9.º ano contam para a nota final do aluno que termina o Ensino Básico –, fosse para reconhecer que o problema poderia ter outra solução, o governante já deveria ter vindo a público falar sobre o assunto.

O caso pode parecer ao ministro, a cumprir os últimos dias na pasta – pois será substituíd­o a partir de dia 2 de abril –, apenas uma “tempestade num copo de água”, mas quando se ouve um professor de Matemática dizer que os alunos nem sabem como fazer os carateres especiais da disciplina no computador , talvez seja o momento de parar e perceber o que de facto se passa.

Ou não?

Diz o calendário que 23 de março de 1974 foi um sábado. Tinha 16 anos, estava no 6.º ano do liceu, gostava muito de História, mas queria ser engenheiro. Só por aí se vê que era parvo.

Morava na Baixa lisboeta, em pleno Chiado. O mais certo é ter passado a tarde desse dia em casa, à espera de que fossem horas de rumar ao Desportivo Clube do Carmo onde, em tertúlias de amigos, se falava de tudo, inclusivam­ente de temas perigosos como a Guerra Colonial, o drama dos rapazes daquela altura. Para escapar à tropa estava disposto a tudo, inclusive a fugir. Para mim, era escusado – aquela era uma guerra que eu não queria e que nunca devia ter existido. O universo acabaria por congeminar a meu favor, como descobri um mês mais tarde.

Sabia bem que vivíamos numa ditadura. Cresci a andar em carrinhos de esferas na António Maria Cardoso, a rua da sede da PIDE, que aos sábados estava vazia. Só lá passava o elétrico. Sabia bem que era, naquela Lisboa, uma “curiosidad­e”. Não se viam negros na cidade.

Nasci na Guiné-Bissau. Sou filho de agricultor­es guineenses. Dos primeiros anos de vida lembro a liberdade de brincar na rua sem ninvez

“Em março de 1974, ainda havia filas para ver o preto da Casa Africana, na Rua Augusta. E não era raro ouvir dizer sobre mim: ‘Olha um preto, vamos tocar que dá sorte’.”

guém que me chateasse. Cheguei a Lisboa em 1965, tinha 7 anos, trazido pelos meus padrinhos, já então reformados. Eu não os chateava e eles não me chateavam.

Fui estudar para o Externato de Nossa Senhora da Conceição, escola mista onde fiz a 4.ª classe. Talpor ser uma escola mista fui bem recebido, de tal maneira que ainda hoje nos reunimos, relembrand­o aqueles anos. Mas não deixava de ser o único negro da escola. Em março de 1974, ainda havia filas para ver o preto da Casa Africana, na Rua Augusta. E não era raro ouvir dizer sobre mim: “Olha um preto, vamos tocar que dá sorte.” Desde pequeno que sentia o racismo, latente na forma como me olhavam e falavam.

Apesar de o bilhete de identidade dizer que era português, sempre me senti afro-europeu. Sempre me senti alfacinha, numa cidade que recebia gente de todo o país. Mais tarde, o meu amigo Zé da Guiné e eu brincávamo­s com quem não nascera aqui, devolvendo uma das frases que mais ouvíamos: “Vai para a tua terra.”

O racismo continua a existir, diria até cada vez mais. Eu não o sinto, neste momento não me toca, mas continua a ostracizar muita gente.

Aos 17 anos jogava à bola nos juniores do Atlético, mas era do Belenenses e, de vez em quando, ia ao estádio vê-los jogar. Com pouco jeito para o bilhar, preferia as conversas pelos cafés da cidade. Do Coche Real, café da Rua do Loreto, à Bernard, passando pela incontorná­vel A Brasileira. Na altura, não bebia álcool. Gostava muito de capilé, refresco de groselha, gasosa e Laranjina C. Os amigos já na altura preferiam as imperiais, sobretudo numa ou outra ida à cervejaria Trindade.

Nas discotecas da Rua do Carmo comprava-se e ouvia-se música. Led Zeppelin, Fela Kuti, Manu Dibango eram os meus favoritos. As boîtes ofereciam matinés. A roupa comprava-se na Por-fí-ri-os. Ou, se se preferisse peças vintage, na Madame Bettencour­t, a primeira venda de roupa em segunda mão de Lisboa, localizada num 1.º andar de um prédio no Largo da Misericórd­ia. Os meus amigos usavam Patchouli, eu água-de-colónia Lavanda, da Ach Brito.

Em 1974, em Lisboa, quase não havia carros. Por isso, aos fim de semana jogava-se futebol por toda a Baixa – no Largo de São Paulo, e até no Largo do São Carlos. A Baixa era comércio: ourivesari­as, relojoaria­s, retrosaria­s, lojas de tecidos, muitos cafés, casas de câmbios, casas de penhores. Os Armazéns do Chiado e Grandella. E a grande e bonita Loja do Diário de Notícias, jornal que eu gostava de comprar por causa das palavras cruzadas.

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