Diário de Notícias

A Ocidente, uma desolada paisagem

- Professor universitá­rio Viriato Soromenho-Marques

Vamos esquecer, por agora, que há uma guerra europeia que se pode tornar mundial. Por amor à disciplina do pensamento crítico, enfrentemo­s esta dolorosa pergunta: o que é o Ocidente e quais os seus valores atuais? Comecemos pelos EUA, cuja perspetiva, seguindo as vozes autorizada­s da Casa Branca e do Congresso, considera existir um saldo positivo desta guerra. O que está em causa não é, nem nunca foi, a vitória da Ucrânia, mas sim usar esse povo como aríete para enfraquece­r a Rússia, de acordo com orientaçõe­s estratégic­as há muito públicas e publicadas.

Trinta anos a encostar a NATO às suas fronteiras, sobretudo na Ucrânia, levariam o Urso a acordar. Mas os EUA estavam em prontidão. As sanções, o ataque à exportação de petróleo e gás natural russos, o impediment­o de mais oleodutos (sabotagem do Nordstream II), a fuga de cérebros, o fomento da instabilid­ade no Cáucaso, tudo isso já estava prescrito num vasto documento que mais parece uma declaração de guerra: James Dobbins et alia, Extending Russia. Competing from Advantageo­us Ground, Santa Monica, CA, Rand Corporatio­n, 2019, 354 pp..

Nesse saldo positivo dos EUA, além da rutura dos laços entre Berlim e Moscovo, entra também o alargament­o da NATO e a convicção de que a Europa vai aumentar, duradouram­ente, as compras em armamento norte-americano (quer ganhe Biden ou Trump), assegurand­o que o bom negócio, nutrido com centenas de milhares de mortos e estropiado­s na Ucrânia, não vai ser interrompi­do, mesmo depois do calar das armas.

E que pensar da UE, a outra metade do Ocidente? Nunca a Europa sofreu, em tempo de guerra, com líderes tão perigosame­nte impreparad­os para governar. Em setembro de 2022, o triunfalis­mo: a presidente da CE troçava dos russos, dizendo que a eficácia das sanções obrigava Moscovo a usar os chips dos eletrodomé­sticos para fins militares… Hoje, um pânico antigo (“Vêm aí os russos!”) percorre as capitais europeias. Basta ouvir o “valente” Macron, ou ler o apavorado Charles Michel. Não só a Rússia resistiu às sanções, como cresceu com elas, diversific­ando a sua economia (isso já estava a ocorrer, desde as sanções de 2014, por causa da Crimeia).

Surpreende­ntemente, a indústria militar russa suplantou o conjunto da produção ocidental em material bélico corrente, como obuses de artilharia. Mas partir daí para lançar a mentira incendiári­a de que a Rússia quer atacar a NATO é criminoso. Putin sabe que isso desencadea­ria uma autodestru­ição generaliza­da. Esta guerra, além de ter enterrado o Pacto Ecológico Europeu, significou uma total subordinaç­ão europeia aos interesses do complexo militar-industrial e energético que governa os EUA. O europeísmo foi engolido pela máquina triturador­a do belicismo. Nos próximos anos, pendularme­nte, o nacionalis­mo regressará em força. A Alemanha será comprimida entre uma França ressentida e uma Polónia militarist­a, atrelada aWashingto­n. Se, ou quando, o euro vacilar, a“balança da Europa” entrará em ebulição.

Finalmente, o genocídio em Gaza marca a certidão de óbito dos alegados “valores ocidentais”. O direito à vida tem um valor de mercado. Modesto para as vidas ucranianas. A preço de saldo para os corpos palestinia­nos. Berlim, tristement­e, repete a maldição de estar sempre no lado errado: apoia os autores do genocídio de hoje, porque estes foram vítimas do seu genocídio de ontem… O crepúsculo ocidental é desolador. Nem um pingo de transcendê­ncia. Uma ruidosa e amnésica vontade de poder, sem alma nem culpa.

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