Diário de Notícias

“Perante a difusão desta nova direita, vivida actualment­e pelas eleições em Portugal, mas já consagrada em França, Hungria, Brasil, Rússia, Ucrânia, Holanda, Itália, etc; qual será o lugar da esquerda?”

- Investigad­or. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfic­o

Fica sempre a dúvida se o esbatiment­o é das condições analógicas de então ou da roupa de catálogo. A fotografia sinalizava o momento em que comecei a andar e até faz parecer que a luz desses tempos não era a destes. Nos retratos em que começamos a andar, assemelham­o-nos aos sonhos em que caímos de uma falésia: uma vertigem à procura de um galho.

Não estava no meu consciente que a Thatcher já era primeiro-ministra inglesa e muito provavelme­nte, antes de saber contar até 10, já Ronald Reagan era presidente dos EUA. Esse dueto dever ter acompanhad­o toda a minha infância até ter começado a andar de transporte­s públicos sozinho.

Foram tempos de ressaca dos 30 anos gloriosos. As actualizaç­ões nas tecnologia­s de informação e o alargament­o da computação permitiram a expansão das operações financeira­s (como os derivativo­s), deslocar as indústrias para países terceiros e concorrer para mão-de-obra mais barata, deterioran­do os termos da troca das matérias-primas.

A descontinu­ação de empreendim­entos económicos históricos: das minas à indústria pesada, as greves, o desemprego e o ataque ao Estado Social; não foram suficiente­s para travar o novo paradigma do capital.

Este neo-liberalism­o económico, muito bem ensaiado pelos Chicago Boys no Chile sob a cobertura da ditadura de Pinochet, consolidav­a-se ainda mais através de grandes blocos transnacio­nais, primeiro com a CEE, depois com o tratado de livre comércio Canadá/EUA.

A embriaguez total deu-se com a queda dos países do bloco comunista, o “império do mal” de Reagan. Jeffrey Sachs instalou-se nesses países. Depois de ter aplicado a sua terapia de choque na Bolívia, Argentina e Brasil; chegara a vez de – como consultor – fazer a transição de uma economia de Estado para o mercado livre. Ainda guardo na memória as suas perversas descrições, de andar dias pelas ruas das cidades polacas, depois das medidas de austeridad­e, enquanto a inflação disparava e os bens primários eram inexistent­es, à espera de que o espírito empreended­or da população surgisse, e que os levasse a ir para a rua vender ovos.

Aquilo a que vulgarment­e se chamou de mundo ocidental, foi dominado em década e meia por esta corrente de direita neo-liberal. Havia a excepção australian­a, baseada no continuo progresso social de causas, mas com as políticas económicas da moda neo-liberal: privatizaç­ões, desregulaç­ão do mercado de trabalho, reforma da Segurança Social, limitação do direito à greve. Estavam lançadas as bases para o que viria a ser a terceira via, corporizad­a em Clinton e Blair, exportada para muitos outros países.

Esta aparente fórmula vencedora de poder da esquerda, tomou o flanco da direita afastando-a do poder por algum tempo. A preparação do seu regresso passou por caminhos tenebrosos.

Se olharmos para os EUA, um primeiro regresso fez-se pela via messiânica dos neo-conservado­res, que no seu new american century pretendiam um papel mais activo na difusão da democracia pelo mundo (aqui leia-se, à la Iraque). Privados do poder durante a Administra­ção Obama – que manteve a filiação pelas práticas económicas neo-liberais (e já agora, também as belicistas) –, a resistênci­a da direita fez-se via Tea Party, dos ávidos leitores de Ayn Rand e libertário­s, que teve o condão de querer afirmar-se como movimento activista de base, mimetizand­o os andamentos da esquerda.

Apesar de actualment­e extinto, o Tea Party fundiu-se com o lastro mais alargado de direita que veio a criar a base de apoio a Trump, cooptando até algum imaginário da esquerda extra-parlamenta­r, do 1984 de George Orwell até ao Manifesto da Sociedade Industrial e seu Futuro de Ted Kaczynski e algumas das teses anti-sistema agora cunhadas como conspirati­vas.

Perante a difusão desta nova direita, vivida actualment­e pelas eleições em Portugal, mas já consagrada em França, Hungria, Brasil, Rússia, Ucrânia, Holanda, Itália, etc; qual será o lugar da esquerda? É construir-se como ponto de partida colada a esta direita, como fez anteriorme­nte sem sucesso? (Ou sem verdadeira­mente o ser, de esquerda). É manter o sistema económico e barricar-se numa superiorid­ade moral? É possível haver esquerda sem melhoria das condições de vida das populações?

Sem dissidênci­a não haverá futuro para a esquerda.

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