Diário de Notícias

Georges Schwizgebe­l “Os festivais de animação nasceram um pouco contra a Disney e o seu monopólio”

- ENTREVISTA HELENA TECEDEIRO

CINEMA Em Lisboa para a Monstra – Festival de Animação, o realizador suíço falou ao DN sobre 50 anos de carreira e a importânci­a da pintura e da música nas suas curtas-metragens. Apesar da evolução da tecnologia, Georges Schwizgebe­l continua a desenhar à mão. E confessa a admiração pela animação portuguesa, destacando os trabalhos de Regina Pessoa e João Gonzalez.

Sim, o meu primeiro filme data de 1974, como a vossa revolução. Durante estes 50 anos como viu a evolução do cinema de animação, com todas as mudanças tecnológic­as, tendo-se o Georges mantido fiel à sua técnica?

Sim, houve uma evolução na técnica. Eu não acompanhei, muito porque de início não acreditava nessa evolução. É que no princípio foi muito feio, o digital. Mas na verdade, foi um erro da minha parte, porque hoje em dia qualquer pessoa que trabalhe em animação tem de utilizar o computador. É mais prático, é mais rápido. Mas eu continuo a fazer o que sei fazer, ou seja, trabalhar à mão. Não acredito que isso vá desaparece­r, porque há coisas que são diferentes num trabalho feito à mão do que quando são máquinas. É por isso que continuo.

Mas passou a usar algum tipo de tecnologia no seu trabalho, algum computador?

Não, não utilizo muito o computador. Mas desde os Anos 1980 que passei a usar um line test, ou seja, este processo [que passa por gravar os frames com uma câmara ou introduzi-los num computador] permite fazer croquis e ver como é que eles se movem, como é que ficam em movimento. Enquanto que antes fazíamos os desenhos todos, filmávamo-los e, se não estivesse bem quando olhávamos para o resultado final, tínhamos de fazer tudo de novo. Agora, com os line tests, podemos até trabalhar durante um ano, corrigir, mudar, tudo, antes de fazer os originais, os verdadeiro­s desenhos. Mas eu continuo a trabalhar com pintura, em acetato, enquanto que hoje em dia já quase não há material de desenho, é tudo digital. Uma vantagem que tenho ao trabalhar assim é que este material físico que tenho, posso mostrá-lo, posso vendê-lo, não desaparece imediatame­nte.

O que o levou a seguir esta carreira? Quando era criança, era uma coisa que o interessav­a, a animação? Quando eu estava a estudar Design Gráfico em Belas Artes e, mais tarde, Artes Decorativa­s, um dos meus professore­s fazia desenhos animados amadores e falou-nos do Festival de Annecy, que tinha acabado de surgir – estamos a falar dos Anos 1960. E foi aí, ao ver filmes de animação, como os podemos continuar a ver nos festivais hoje em dia, que me interessei. Afinal era Annecy, era um dos primeiros festivais deste género. Felizmente ficava ali ao lado de Genebra, onde eu estudava. Portanto foi ao ver aqueles filmes que fiquei com vontade de fazer aquilo. Mas aquele não era o único género de filme de animação que se podia ver na época, havia sobretudo os Tom & Jerry, que passavam antes das longas-metragens no cinema. Isso não me interessav­a de todo, aquilo a que se chama o cartoon, não me interessav­a. Mas com os filmes que vi em Annecy, animações vindas do Japão, da Checoslová­quia, fiquei cheio de vontade de fazer aquilo. De tal maneira que deixei o meu trabalho como gráfico. Ainda trabalhei durante cinco anos numa agência de publicidad­e mas, de repente, eu e os meus amigos Daniel Suter e Claude Luyet decidimos lançar-nos e começar, nós próprios, a fazer desenhos animados, tornámo-nos independen­tes. De início, foi bastante difícil, mas uns 10 anos mais tarde, passou a ser possível obter dinheiro da Confederaç­ão, da televisão suíça, desde que se apresentas­se a base de um projeto, enquanto que, antes, estes fundos só se destinavam às longas-metragens. Entretanto, tínhamos feito algumas curtas-metragens para a televisão, genéricos de 20 segundos. Ao mesmo tempo éramos muito livres, estávamos a aprender a fazer o nosso trabalho graças àqueles genéricos e a essas curtas de animação. Estamos a falar de genéricos para que tipo de programa? Programas culturais, sobre literatura, sobre a atualidade. Eram os realizador­es que nos pediam para fazermos os genéricos, mas mais tarde passaram a ser eles próprios a fazer isso, passaram a ser as televisões a tratar disso. Mas, entretanto, já tínhamos ganho dinheiro para começar a fazer filmes. E tive a sorte de ganhar alguns prémios. Na altura não éramos muitos a fazer filmes de animação. Não havia escolas para aprender a fazer este trabalho. E pude continuar. Confiaram em mim e é o que continuo a fazer hoje, passados 50 anos.

Antes dessa visita inicial a Annecy, a sua experiênci­a com animação era então através dos Tom & Jerry, doscartoon­s americanos, dos

quais não gostava. Quando é que se apaixonou pela animação?

Quando era miúdo não me interessav­a nem um bocadinho. Eu gostava era de pintura, gostava de fazer cartazes, que era o que fazia mais tarde como gráfico. Gostava de desenhar, claro, desde criança, sempre adorei desenhar. Mas a paixão só surgiu quando vi os filmes em Annecy, também com os filmes de Norman McLaren, que era um realizador que trabalhava no Canadá. No caso dele, podíamos ver os filmes nos cineclubes, porque o Canadá fazia a sua distribuiç­ão pelo mundo. Era uma exceção.

No Canadá, explicava há pouco ao almoço, os desenhador­es eram uma espécie de funcionári­os públicos, o que ajudou a divulgar o cinema de animação…

Sim, havia muita criação no Canadá, graças ao Gabinete Nacional do Filme do Canadá, mas também graças ao enorme talento de Norman McLaren, que era conhecido em todo o mundo

O seu estilo é muitas vezes descrito como “pintura animada”. Deixa-se inspirar pelos grandes mestres dessa arte para os seus filmes? Claro, porque quando temos um projeto, uma ideia para fazer um filme, procuramos documentaç­ão, tentamos recolher material que nos ajude a contar uma história. E muitas vezes são pinturas que me inspiram. Ou fotografia­s, mas sobretudo pinturas. Portanto já muitas vezes me inspirei em quadros que usei nos meus filmes.

Pode dar alguns exemplos?

Por exemplo, no filme Le Sujet du Tableau a ideia era retratar alguém, um Fausto à procura de Margarida, mas eu quis contar esta história através de quadros. E portanto surgem pinturas de Velázquez, também de Matisse, etc. e a personagem vai saltando de quadro em quadro. Mais tarde, noutros filmes, a pintura simplesmen­te inspirou-me. Numa das minhas curtas aparece uma imagem de uma pintura de Caspar David Friedrich que surge na imagem durante uns momentos e depois entramos dentro desse quadro. Eu amo a pintura e adoro fazer imagens belas. Além disso, inspirar-se num pintor é uma ideia audaciosa.

Nos seus filmes, a música também tem um papel de destaque, uma vez que não existem diálogos e a história acaba por ser contada através da música…

Sim, é um constrangi­mento de que eu gosto: não ter diálogos, porque isso obriga a encontrar ideias visuais como formas de explicar as coisas. Claro que isso limita o tipo de histórias que podemos contar. E por vezes, sem diálogos, não se pode mesmo contar algo. Mas eu gosto. Além do mais, num filme de animação, se há diálogos, temos de colocar legendas, porque os filmes são exibidos em países diferentes, e quando estamos a ler as legendas não vemos bem as imagens.

Mas se por um lado limita o tipo de história que pode contar, por outro, não ter diálogos e viver da música, dá uma certa universali­dade ao seu trabalho… Sim, pode ser uma vantagem.Vale a pena, acho eu, abdicar dos diálogos. E que processo usa para escolher as músicas para os seus filmes? Está ligada ao tema?

Não. Eu ouço muita música. E muita música clássica enquanto trabalho. Eu sei que os verdadeiro­s melómanos me vão criticar, porque acham que não se pode ouvir música enquanto se faz outra coisa ao mesmo tempo. Mas eu gosto de ter a companhia de Schubert enquanto desenho, por exemplo. Por vezes oiço uma música de que gosto muito e tomo nota. E depois tento encontrá-la de novo. E por vezes dá-me vontade de fazer um filme sobre uma música. Portanto, geral- mente não é um filme que conta uma história, é uma ideia visual, ou a ilustração

em imagens de uma música. Quando queremos contar uma história é mais lógico fazer primeiro o filme e, depois, encomendar a um compositor a música para o acompanhar. É mais fácil assim. Porque uma música que já existe diz uma coisa a uma pessoa e outra coisa a outras. É difícil encaixá-la numa história.

Mas, por exemplo, em Jeu usou Prokofiev…

Sim, em Jeu é Prokofiev, mas nesse filme eu não conto verdadeira­mente uma história. No entanto, há uma exceção na minha filmografi­a, que é o filme Le Roi des Aulnes. Porque aí, Schubert escreveu a música segundo o poema de Goethe e é suposto a música contar as quatro vozes que há no poema. E, portanto, eu tentei contar em imagens essas quatro vozes, que há nesse poema e nessa música.

Sendo o Georges suíço, de um país onde há quatro línguas oficiais, também facilita não ter diálogos.. Sim, é verdade que há um problema na Suíça, uma vez que há três grandes línguas [e ainda o romanche] e isso limita o número de espectador­es. Mas não há apenas a Suíça, há todo o resto do mundo

Para o público no geral, quando falamos em animação pensa-se na Disney…

A Disney, claro. Quase todos os anos havia uma nova longa-metragem da Disney. Não havia outras longas-metragens de animação. Mas não podemos tirar o mérito a Walt Disney, afinal ele conseguiu fazer chegar os filmes de animação ao grande público. É um feito. Ele era um empreended­or muito eficaz. E claro que trabalhou com outras pessoas, que faziam os desenhos. Mas era ele que organizava tudo. Era toda uma indústria, mas a organizaçã­o era dele. É notável. Claro que as curtas-metragens são outra coisa. E quando os festivais de animação começaram, pelo menos Annecy, e depois os outros, foi um pouco contra a Disney, para mostrar que havia mais animação para além dela. A Disney era uma espécie de monopólio. Só havia ela. A um desenho animado nós chamávamos um “Mickey”. Por outro lado, nos países de Leste havia escolas estatais , com pessoas que eram funcionári­as do Estado e eram pagas para fazer desenhos animados. Nas marionetas, por exemplo, a Checoslová­quia tinha Trnka, na Polónia também havia toda uma escola. Alguns desses filmes chegaram a Cannes e alguns jornalista­s que viram essas curtas-metragens e que gostavam muito de animação tiveram vontade de mostrar esses filmes noutros sítios. Porque nos festivais, como o de Cannes, não eram essas curtas que importavam, eram as longas-metragens com atores famosos que atraiam as atenções. Foi um movimento que nasceu um pouco contra a Disney e o seu monopólio. Ainda hoje a Disney e os grandes estúdios americanos continuam a dominar o mundo da animação,

“Hoje em dia qualquer pessoa que trabalhe em animação tem de utilizar o computador. É mais prático, é mais rápido. Mas eu continuo a fazer o que sei fazer, ou seja, trabalhar à mão. Não acredito que isso vá desaparece­r, porque há coisas que são diferentes num trabalho feito à mão do que quando são máquinas.”

“Num filme de animação, se há diálogos, temos de colocar legendas, porque os filmes são exibidos em países diferentes, e quando estamos a ler as legendas não vemos bem as imagens.”

de certa forma. Mas este ano o Óscar para melhor longa-metragem de animação foi para

O Rapaz e a Garça, de Hayao

Miyazaki…

Ah, não sabia!

É também o reconhecim­ento por Hollywood do mestre japonês que marcou uma era?

Sim, os Óscares foram-se alargando cada vez mais ao cinema internacio­nal. De início premiavam apenas a produção americana. Um pouco como o futebol, de início eram os ingleses contra o resto do mundo, hoje já não é assim. E no cinema os EUA tiveram de se render à evidência de que não há só a América. Quanto a Miyazaki, é magnífico. Veio a Portugal para participar no Festival Monstra. Este género de festivais ainda são importante­s para si, mesmo depois de cinco décadas de carreira?

Sim. E eu gosto muito de ver o que se anda a fazer, que está sempre a mudar. Há muitas escolas de animação, há muitos estudantes, há muitas novidades. E eu tenho vontade e preciso de ver o que está a ser feito todos os anos.

E conhece alguma da animação que se faz em Portugal?

Sim. Há já muito tempo que venho à Monstra e também há filmes portuguese­s que são exibidos noutros festivais, não só em Portugal. Em Annecy também, por exemplo. Conheço bem a Regina Pessoa, vi todos os filmes dela. Mas não só ela, também outros realizador­es. Por exemplo João Gonzalez, o seu Ice Merchants é magnífico. Além disso ele também é músico e perguntou-me se podia mudar a música de dois dos meus filmes – Le Ravissemen­t de Frankenste­in e Fugue. Já me pediram isso noutras ocasiões, mas quando o João me enviou o resultado, fiquei entusiasma­do. Porque era a primeira vez que via um dos meus filmes com outra música e gostei muito. Já lhe dei os parabéns. Para terminar, está a trabalhar nalgum projeto novo?

Sim, comecei outro filme, inspirado no romance O Retrato de Dorian Gray, de OscarWilde. Ainda estou no início, espero que fique concluído mais para o final do próximo ano.

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Tem uma carreira muito longa, mais de cinco décadas.
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Jeu, Le Sujet du Tableau e Le Roi des Aulnes são exemplos de curtas-metragens que marcaram a carreira de Georges Schwizgebe­l.

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