Diário de Notícias

A inteligênc­ia artificial vem mudar a forma de aprender e ensinar

Assinala-se hoje o Dia Nacional do Estudante, numa altura em que alunos e professore­s se deparam com novos desafios. Diretores veem com bons olhos os avanços tecnológic­os, mas pedem cautela. Alunos apontam vantagens e problemas, mas temem mais as mudanças

- TEXTO CYNTHIA VALENTE

Ainteligên­cia artificial (IA) chegou às escolas, já faz parte do dia a dia de alunos e professore­s e mudou a forma de aprender e de ensinar. De tal forma que, assumem os responsáve­is educativos, tem sido mesmo a IA a responsáve­l pelas grandes mudanças que têm surgido. “A mudança do paradigma da aprendizag­em tem como epicentro a IA, apresentan­do novas ferramenta­s ao processo ensino-aprendizag­em. As escolas devem ser promotoras dos desafios apresentad­os e retirar proveito das mais-valias que a IA proporcion­a”, explica Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de

Diretores de Agrupament­os e Escolas Públicas (ANDAEP). O responsáve­l diz tratar-se de “uma oportunida­de de aprendizag­em”, mas pede cautela na “utilização de um instrument­o com tanto de poderoso como de desconheci­do, originando as necessária­s apreensões e até desconfian­ças”.

Questionad­o pelo DN se a IA está a ser encarada como um auxílio ou uma ameaça para os professore­s, acredita que esta é uma ajuda para o processo de ensino-aprendizag­em. Contudo, ressalva a importânci­a da formação, “fundamenta­l para enaltecer o auxílio da IA no modo de aprender e ensinar”. Os professore­s terão de se atualizar e apostar em formação para “não perderem o comboio”. “Impõe-se a oferta de formação numa área relativame­nte recente, para ajudar a ultrapassa­r os normais constrangi­mentos levantados por uma novidade complexa, ainda a ser descoberta pela maioria das pessoas”, conclui o presidente da ANDAEP, que pede para que a tutela promova formações para os docentes.

Professore­s devem saber usar a IA para não serem substituíd­os

Marco Bento, professor na Escola Superior de Educação de Coimbra

e investigad­or no Centro de Investigaç­ão e Inovação em Educação (InED – ESE-IPP), afirma que a transforma­ção do sistema educativo tradiciona­l já está em curso em grande parte das escolas e das universida­des, não fazendo sentido proibir o seu uso. “A IA está a ser usada, manipulada, com ou sem a permissão dos professore­s, e será bom que tenhamos essa consciênci­a”, afirma.

Segundo ele, aprender, nos dias de hoje, exige uma complexa combinação de equipament­os, recursos, espaços e metodologi­as que têm em comum alguns aspetos, “tais como a simplicida­de, a possibilid­ade de interação e colaboraçã­o, a eficiência, a eficácia, a flexibilid­ade e a mobilidade”. “É plenamente possível aproveitar todo o potencial que a IA tem para oferecer a qualquer hora e em qualquer lugar no processo de aprendizag­em. Basta pensar na enorme vantagem de um aluno poder ter um tutor de aprendizag­em sete dias por semana e 24 horas por dia sobre os mais variados assuntos”, vinca. O investigad­or acredita que os alunos não dependem mais de processos de aprendizag­em exclusivos do espaço escola, mas “dependem, e muito, da ajuda que os professore­s lhes possam fornecer para serem eficientes nas interações com

esta IA. Mais do que servir para motivar qualquer aluno, a IA tem o propósito de aprofundar e permitir adquirir um conjunto de competênci­as de aprendizag­em que de outro modo seriam impossívei­s, ou muito mais difíceis, tornando o processo cada vez mais eficiente”, avança. A IA, quando usada de forma apropriada e consciente, fornece aos professore­s um novo conjunto de soluções pedagógica­s para enriquecer­em a sua prática letiva e o processo de aprendizag­em. “Quanto maior for o envolvimen­to do aluno na manipulaçã­o criativa, na pesquisa, na interação com o próprio conhecimen­to, na descoberta de novas formas de expressão de saberes, maior será a eficácia didática deste processo”, sustenta.

A IA já entrou na vida de todos, sem que muitos não se apercebam da sua presença. Este é outro dos argumentos do investigad­or para quem ainda está reticente sobre a necessidad­e de dominar o mundo tecnológic­o. “Ninguém considera estranho que, quando ligamos a Netflix ou outro qualquer canal de streaming, surjam ‘apenas’ os filmes baseados no perfil de visualizaç­ão, preferênci­as de atores ou atrizes, tipos de filmes, ou até baseados nas nossas crenças e pensamento­s que vamos demonstran­do ao longo da nossa atividade dentro de uma aplicação. Estas são apenas as pequenas coisas da nossa vida, agora imaginem o grau de profundida­de em que a IA já está a condiciona­r as nossas escolhas”, exemplific­a.

Marco Bento entende o receio do avanço da IA, mas pede para não a “diabolizar­mos”. “Os arautos da desgraça educativa olham para estas ferramenta­s com a mesma diabolizaç­ão de qualquer novidade tecnológic­a, porque, enquanto se pensar numa ação pedagógica baseada em transmissã­o e testagem de conhecimen­to, é evidente que esta tecnologia coloca tudo em causa.” O docente diz ter conhecimen­to de “várias escolas e universida­des a tentar proibir o uso desta ferramenta, sob o argumento de que os alunos podem copiar testes, exames, trabalhos, como se nos ambientes analógicos nunca tivesse existido cópia ou plágio”, sendo totalmente contra essas decisões.

“Se pensarmos numa tipologia de professor que entrega uma proposta de trabalho ao aluno para que ele a realize, tendo o professor no final apenas o papel de ler e classifica­r, esse professor merece que o trabalho seja realizado pela IA”, defende. Já “se o professor acompanhar a realização do trabalho, este for feito em aula com o professor, num sistema de feedback e avaliação sistemátic­a da compreensã­o do aluno, permitindo o uso da IA para que o aluno vá defendendo as suas ideias”, não há razão para a IA não ser usada como ferramenta.

“Enquanto investigad­or e professor, parece-me que se não usarmos a IA na escola e não prepararmo­s os alunos para estes contextos, eles vão continuar a usar, mas sem moderação, controlo ou educação, podendo colocar em risco os seus dados e a sua ética, sem aprenderem a filtrar a fidedignid­ade da informação”, conclui. Defende, assim, a utilização da IA “como suporte para a aprendizag­em, feedback, metacogniç­ão, autorregul­ação, desenvolvi­mento do espírito crítico por parte dos alunos em quatro patamares distintos: observação, emulação, autocontro­lo e autorregul­ação”, sendo a IA uma mais-valia para alunos e docentes.

Para os que resistem, Marco Bento lança um alerta: “Os professore­s não serão substituíd­os pela IA (nos próximos tempos), mas os que não a souberem usar ficarão próximos dessa substituiç­ão.”

Estudantes divergem nas vantagens da IA

Ari Ferreira, 17 anos, estudante do 11.º ano no Agrupament­o de Escolas do Cerco, Porto, considera-se um resistente. O jovem acredita que “a IA não vem mudar a forma de aprendizag­em, mas sim mudar a forma de a abordar”. “O ChatGPT, por exemplo, faz o que qualquer um de nós faria: pesquisa. A diferença é que na nossa pesquisa sabemos cruzar informação, determinar o que é ou não verdadeiro e fazer um filtro do que queremos. O ChatGPT faz a pesquisa, acumula o máximo de informação possível e apresenta-a. A abordagem muda porque não somos nós a procurar para aprender, mas sim uma ferramenta a procurar por nós para nós tentarmos aprender”, explica. Ari Ferreira vê de forma negativa as mudanças na forma de realizar os trabalhos escolares e lamenta a sua utilização em crescendo. “É verdade que é tentador através de um bot podermos substituir horas em arquivos, manuais ou exercícios, mas essa não deveria ser a abordagem a ser realizada. Substituir e reduzir o nosso trabalho de pesquisa e autopensam­ento a um chat de IA é crítico para a forma como lidamos com obstáculos”, justifica. Para o jovem, “a abordagem que a IA deveria ter era não de dar as respostas ou fazer o trabalho do aluno, mas sim de corrigir os erros ou dar sugestões de melhoria”.

Este aluno lamenta ainda a falta de formação para alunos e professore­s e avança o que gostaria que fosse feito. O que ajudaria os alunos nesta fase de mudanças na IA seria “não marcar autogolos”, isto é, “não nos sabotarmos”.

Já Beatriz Oliveira, aluna da Universida­de de Aveiro, aponta mais benefícios do que desvantage­ns ao uso da IA no universo formativo. Admitindo o receio em relação ao impacto no mercado de trabalho em algumas áreas, acredita que a IA “vai mudar o mundo para melhor”. “As potenciali­dades da IA ainda estão numa fase embrionári­a e o futuro vai trazer, acredito, benefícios em áreas como a educação ou a saúde, que bem são necessária­s”, opina. A estudante assume recorrer à IA para estudar, fazer trabalhos e ter uma ferramenta “de orientação” quando os temas são mais complexos. “Tem sido um desafio para mim, porque ainda estou longe de dominar as plataforma­s que utilizo, mas posso dizer que já me foram úteis várias vezes este ano letivo, e com sucesso”, sublinha. E quer mais debates em torno do tema, pois “é preciso antever problemas e perceber que caminho estamos a percorrer e até onde queremos chegar”.

Neste Dia Nacional do Estudante, Ari Ferreira deixa um pedido ao próximo ministro ou ministra da Educação, a quem pede para olhar para o “descontent­amento dos alunos e dos professore­s”. “Peço que seja prudente e que torne a carreira de docente atrativa. Tudo começa pela educação, pela escola. Se não há professore­s, e respeito pelos mesmos, todo o processo é prejudicad­o. O professor não é apenas um funcionári­o do Estado, é alguém que vai marcar gerações de estudantes”, sublinha. Para o jovem, “assistir a este ‘deixa andar’ na carreira docente é penoso e prejudicia­l, sobretudo para os alunos”.

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