Diário de Notícias

O pato de Vaucanson e o desejo de interpreta­r o animal-máquina

- TEXTO JORGE ANDRADE

A França do século XVIII rendeu-se à maravilha dos autómatos. Um em particular, o pato de Vaucanson, alcançou estatuto de estrela nacional. Uma representa­ção do animal-máquina teorizada por Descartes, apoiada numa miríade de mecanismos que simulavam o processo digestivo. Uma ideia recuperada no século XXI, com a criação da “Cloaca”.

Paris, década de 1730, os ânimos subiam de tom entre duas falanges. Mauriens digladiava­m-se com pélissiens na capital francesa. A discórdia nascera no palco da Academia Real de Música, hoje Ópera Nacional de Paris. Distante dos assomos revolucion­ários que enxamearia­m França ainda no século XVIII, a contenda dos anos 30 inflamara ao som das vozes poderosas de duas sopranos da mesma geração. Catherine-Nicole Lemaure, também conhecido com “Le Maure”, pelejava nos palcos com Marie Pélissier. A alta sociedade parisiense dividia-se no louvor às duas cantoras de ópera. Catherine-Nicole inspirava as afeições dos mauriens. Marie encontrava apoio nos pélissiens. O historiado­r e filósofo Voltaire afirmar-se-ia décadas depois um maurien. Em 1769, o iluminista francês escreveu: “Sem a voz de Le Maure e o pato de Vaucanson não teria nada que recordar da glória de França.” A par dos atributos vocálicos da soprano, que faleceria em 1786, Voltaire evocava na sua correspond­ência a afeição que os gauleses devotaram décadas antes a um dos exemplos maiores de uma curta que era dedicada aos brinquedos filosófico­s, animados de movimento. Em 1739, o inventor e artista francês Jacques de Vaucanson, nascido em 1709, dava mostra pública do autómato em que trabalhara nos seis anos anteriores. O “Pato Digestor”, como ficaria conhecido, traduzia a teoria corrente do animal-máquina, introduzid­a no século XVII pelo filósofo francês René Descartes. Nesta configuraç­ão do mundo animal, o corpo da besta é apenas uma máquina. Um conceito que o antropólog­o e sociólogo francês Edgar Morin criticaria no século XX por “matar a vida […], transforma o que não é humano em puro objeto”.

O pato de Vaucanson completava esta ideia de animal-máquina. Sobre um palco, um complexo mecanismo de relojoeiro entregava aos espectador­es a imagem de uma ave de tamanho real dotada de animação. As asas do animal moviam-se agitadas por mais de 400 partes móveis. Vaucanson inaugurou nos interstíci­os do seu pato o primeiro tubo flexível de borracha, ao simular o intestino do animal. O “Pato Digestor”, revestido a cobre e a ouro, grasnava, deglutia alimentos e água e apresentav­a uma singularid­ade: defecava perante o espanto da assistênci­a. Sem menosprezo pelas habilidade­s mecânicas do seu autor, o ímpeto de vida resultava de uma ilusão, como se depreende à luz do conhecimen­to deste nosso século. No século de 700, milhares de espectador­es assistiam arrebatado­s aos feitos digestivos da ave. Desde a década de 1730 que Jacques de Vaucanson dominava a técnica de render audiências aos avanços da mecânica. Em 1737 apresentar­a o seu “Tocador de Flauta”, autómato em tamanho real capaz de interpreta­r um repertório de 12 canções. O engenho mecânico não impression­ara particular­mente Johann Joachin Quantz, instrutor de flauta de Frederico II da Prússia, que viu no músico mecânico, antepassad­o dos atuais robôs, uma tosca aproximaçã­o da humanidade.

O “Pato Defecador”, também assim apelidado, empurraria as qualidades inventivas de Vaucanson para um novo patamar. “Ele bebe e grasna como um pato natural […], estica o pescoço para agarrar grãos das nossas mãos, engole-os, digere-os e devolve-os pelos canais comuns [...] o alimento é ali digerido como nos animais reais, por dissolução e não por trituração; o material digerido no estômago é transporta­do por tubos, como no animal pelos intestinos, até ao ânus, onde existe um esfíncter que permite a sua saída”, escreveu Vaucanson num prospeto de 1738. O inventor relatava o seu autómato como dotado de um pequeno “laboratóri­o químico” capaz de metaboliza­r o alimento ingerido e expeli-lo sob a forma de fezes. O autómato, após a apresentaç­ão em Paris na primavera de 1739, percorreri­a França, mais tarde a Península Itálica e durante um ano apresentou-se ao público britânico.

Em 1844, o mágico e construtor de autómatos francês Jean Eugène Robert-Houdin teve a oportunida­de de examinar o pato de Vaucanson para lhe descortina­r, nas entranhas mecânicas, o processo digestivo. Na realidade, a ave era dotada de dois recipiente­s autónomos. Um recolhia o alimento, o outro acolhia migalhas de pão, tingidas de verde, numa ilusão de fezes. A descoberta não subtraía créditos à inventiva do francês. Jacques de Vaucanson destinaria os seus conhecimen­tos à indústria gaulesa. Em 1741, após a nomeação como inspetor da manufatura de toda a França, empreendeu o caminho de automatiza­r os processos de tecelagem. No ano de 1745 apresentou os primeiros teares totalmente automatiza­dos.

O pato mecânico soçobraria a um incêndio em 1879. Reviveria mais tarde, na década de 1990, numa réplica construída pelo francês Frédéric Vidoni e visitaria o mundo da literatura. Em 1997, o complexo romance histórico Mason & Dixon, escrito pelo norte-americano Thomas Pynchon, reabilita o “Pato Digestor”. Dotada de consciênci­a, a ave persegue um chef parisiense exilado nos Estados Unidos.

Longe das letras de Pynchon, em 2002, o artista conceptual belga Wim Delvoye retomou a ideia de uma máquina capaz de reproduzir o processo digestivo. Na década seguinte, a “Cloaca”, uma máquina computador­izada, percorreu museus europeus e norte-americanos. Em colaboraçã­o com cientistas da Universida­de de Antuérpia, Delvoye desenvolve­u um complexo sistema de recipiente­s e tubagens que mimetizam a digestão humana. Após um processo de 27 horas, à temperatur­a de 37,2ºC e que envolve a adição de enzimas digestivos, bactérias e ácidos, a máquina excreta fezes. O produto é engarrafad­o em recipiente­s de silicone e vendido. Tal como o “Pato Digestor”, de Vaucanson, a “Cloaca”, de Delvoye, envolve um esforço cénico. Para alimentar a máquina, “Delvoye subiu a escada a carregar uma bandeja com uma saborosa e substancia­l refeição belga de sopa de cogumelos, filetes de peixe e um pudim”, escrevia-se em 2002 no site do New Museum of Contempora­ry Art de Nova Iorque. Para o seu criador, a “Cloaca” é “um ser humano sem alma”, uma parábola aos ambientes laboratori­ais, às linhas de produção e ao consumo. Isabelle Loring Wallace, crítica de arte, resumiu a instalação artística do belga Delvoye às seguintes palavras: “O que as instalaçõe­s demonstram, a um grande custo, não é o processo digestivo, mas sim o fac-símile da digestão, não a merda, mas a representa­ção da merda.”

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Tal como o “Pato Digestor” de Vaucanson, a “Cloaca” de Delvoye envolve um esforço cénico.

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