Diário de Notícias

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num encontro em Lisboa com pastores de diversas congregaçõ­es do país e alguns cabeças de lista. O evento, que ocorreu num hotel, foi também transmitid­o em direto no YouTube.

Entre orações, discursos e muitas fake news, a conversa teve como objetivo principal instruir os pastores a “passarem a palavra” do ADN para garantir o voto nas legislativ­as. O discurso conservado­r de apelo à família e bons costumes foi baseado em grande parte em desinforma­ção. Para citar alguns exemplos, foi dito que Portugal aprovou recentemen­te uma lei que “pode dar direito a prisão” aos pais que levarem ao psicólogo filhos que querem “trocar de sexo” e que “a OMS e a ONU estão instruindo escolas primárias de todo o mundo a ensinar as crianças a masturbar-se, a fazer sexo oral e ter relações homossexua­is”. Naturalmen­te, nenhuma destas afirmações tem a mínima relação com a realidade.

A clássica “ideologia de género” não ficou de fora da conversa, com a invocação constante de que “a família é sagrada” e que é dever dos evangélico­s “defender a família com toda a força”. Outra falsa tese difundida é de que existe um suposto plano de criar “soldados para dominar a política daqui a 20 anos” para “impor o que querem” na sociedade.

Valdinei Ferreira, outro investigad­or ouvido pelo DN, explica que o discurso do “bem contra o mal” faz parte da estratégia adotada pelas igrejas. “Quem não é da minha orientação política, não é da minha corrente, representa o mal, e quem está comigo está do lado do bem. É uma simplifica­ção da Teologia Cristã”, diz Ferreira, que é doutor em Sociologia pela Universida­de de São Paulo (USP) e também pastor.

O investigad­or chama o fenómeno de “conspiritu­alidade”, uma soma das teorias conspirató­rias com a espiritual­idade. “Você usa a teoria conspirató­ria para alimentar a espiritual­idade, a devoção das pessoas, mobilizá-las na igreja e pela religião”, argumenta.

Frisando que não possui dados científico­s sobre Portugal, assevera que no Brasil a “conspiritu­alidade” funcionou: “Aqui a jogada é mais ou menos a seguinte. Você toca o terror nas pessoas, dizendo, olha, há um grande perigo, vão destruir as nossas criancinha­s na escola, a pureza delas, com kit gay, falando de sexo. Então, a família está sendo destruída, é o aborto. Colocam esses temas que amedrontam as pessoas e mobilizam para votar nos representa­ntes dos valores delas.”

Houve até quem tenha vindo do Brasil para “conspiraci­onar”. Abílio Santana, ex-deputado federal da Bancada Evangélica, esteve em Lisboa reunido com líderes religiosos a 12 de fevereiro. “Vamos to

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da campanha havia um apelo direto ao voto, com foto de uma manifestaç­ão pró-Bolsonaro.

mar a política do Diabo, em nome de Jesus”, gritou. Em resposta, os pastores e fiéis louvavam com “Amén” e “Glória a Jesus”.

Na mesma estratégia do “bem contra o mal”, Santana mentiu, ao dizer que “existem projetos diabólicos e satânicos” em tramitação no Parlamento português. A incursão da chamada “Bancada Evangélica” do ADN foi de Norte a Sul do país, com reuniões em igrejas do Distrito de Vila Real e Faro, atestou o DN. Paralelame­nte, foram algumas das regiões em que o partido mais teve votos.

Católicos versus Evangélico­s

Apesar de Portugal ser um país maioritari­amente católico, tem-se assistido a um aumento de fiéis evangélico­s, principalm­ente após a pandemia de covid-19. É o que dizem os dados do estudo Igreja Evangélica em Portugal vista de perto, da Aliança Evangélica Portuguesa,

divulgado em 2023. No estudo, 82% dos pastores asseguram que as suas igrejas “estão a crescer” e que “grande parte das conversões nos últimos três anos incidiu entre os católicos não-praticante­s e indivíduos provenient­es de famílias evangélica­s”.

Mais do que atentar a números, Donizete Rodrigues crê que o comportame­nto dos fiéis católicos e dos evangélico­s é muito diferente, o que se repercute na mobilizaçã­o política e no proselitis­mo: “As pessoas declaram-se católicas, mas não são praticante­s do catolicism­o. O catolicism­o tem uma forte componente social, apenas, que aparece na hora do batismo, casamento e funeral. Fora disso, as pessoas não vão à igreja.”

Ao mesmo tempo, enquanto a maior parte dos católicos são idosos e adultos, os evangélico­s arrebatam um número crescente de jovens, principalm­ente pela forma

profission­al como usam as redes sociais. Valdinei Ferreira concorda que as igrejas evangélica­s “estão em vantagem” em relação às demais no sentido de obter mais seguidores, especialme­nte crianças, adolescent­es e jovens. Nas celebraçõe­s que o DN acompanhou nesta reportagem, uma grande fatia do público era jovem.

Há quem em Portugal se inquiete há algum tempo com esta capacidade de atração das igrejas evangélica­s face à católica e com a ligação daquelas a partidos: caso do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que na página oficial da Presidênci­a se define como católico. Em agosto de 2022, em entrevista à SIC, associou aquilo que caracteriz­ou como “a ascensão do Chega” aos imigrantes – “dois terços do eleitorado desse partido é de imigrantes Brasileiro­s e porventura Africanos” (o que os factos parecem refutar, já que no inquérito

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