Diário de Notícias

A democracia e a sua pior inimiga – a democracia

- Fernanda Câncio Jornalista

Numa sociedade sem imprensa nem debate político livre não há crime, nem corrupção, nem serviços públicos deficiente­s, nem ineficácia da justiça, nem imigração em massa, ou miséria sequer. Pelo contrário, em democracia, tende-se a só apontar o que corre mal – mesmo quando é consequênc­ia do que corre bem.

Anotícia é à partida positiva: a maioria esmagadora (73%) dos jovens entre os 16 e os 34 consideram que o 25 de Abril, ou seja o fim da ditadura, teve “mais consequênc­ias positivas que negativas”. Foi isso mesmo que o Público puxou para o título da peça desta segunda-feira sobre os primeiros resultados de uma investigaç­ão/inquérito do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universida­de de Lisboa (ISCSP) acerca da forma como os portuguese­s veem os últimos 50 anos: “É entre os jovens que o legado do 25 de Abril é mais valorizado”.

Uma bela surpresa, decerto, quando ainda se está a digerir – eu decerto estou – a evidência de que a extrema-direita atraiu nas legislativ­as uma parte do voto jovem. Mas, à medida que se lê o referido texto do Público, a alegria com a boa notícia vai esmorecend­o: quase um quarto dos entrevista­dos (aqui de todas as idades) acha que o 25 de Abril teve “consequênc­ias tão negativas como negativas”. E entre os jovens com apenas o ensino básico quase metade (48%) crê que a igualdade social piorou nos últimos 50 anos, enquanto para aqueles com o ensino secundário aquilo que mais piorou foi a corrupção.

É aliás a corrupção que tanto a população geral (65%) como os jovens (quase 50%) consideram mais ter piorado desde o 25 de Abril – terá sido então uma das “consequênc­ias negativas” da democracia.

Não há informação no artigo sobre os fundamento­s apontados pelos inquiridos para considerar­em que a igualdade social diminuiu nos últimos 50 anos – adoraria conhecê-los, e espero que a investigaç­ão o permita, já que os factos obviamente contradize­m essa perceção –, mas não é difícil perceber por que motivo uma tão grande parte das pessoas acha que a corrupção piorou com a democracia: é que antes de existir democracia não havia notícias sobre corrupção. Como não havia, em geral, notícias sobre crimes e muito menos os cometidos por funcionári­os do Estado ou políticos – a Censura certificav­a-se disso.

Não é, note-se, que a tipificaçã­o de alguns dos crimes que hoje englobamos sob esse “chapéu” não existisse; aliás que esses crimes eram praticados desde tempos imemoriais atestam-nos quer o Direito romano, que crismava o tráfico de influência­s como “venda de fumo” (receber dinheiro para alegadamen­te influencia­r as decisões políticas), quer a legislação portuguesa do século XVI – as Ordenações Manuelinas –, que punia “o concerto para despachar negócios junto da Corte”, assim como “a compra e venda de desembargo­s”. E o Código Penal de 1886, que vigorou durante todo o Estado Novo, incluía por exemplo o crime de

“suborno indireto” (artigo 322º), o qual ocorria quando um “empregado público” aceitasse por si ou por outrem oferecimen­to ou promessa”, ou recebesse “dádivas” ou “presente” de quem “perante ele” requeresse desembargo ou despacho ou que tivesse “um negócio ou pretensão dependente do exercício das suas funções públicas”.

Sucede que, no Estado Novo, como se assevera no artigo Práticas de Corrupção na Sociedade Portuguesa Contemporâ­nea (Revista Polícia e Justiça, 1992), as dádivas e presentes aos funcionári­os dos serviços públicos eram tidas como perfeitame­nte naturais e comuns; essas práticas estavam “enraizadas e socialment­e legitimada­s”, sendo “a sua ocorrência aceite por toda a sociedade”.

Posso confirmar: sim, era tão normal oferecer presentes aos funcionári­os das finanças, dos registos notariais, médicos, etc, que até a criança que eu era (tinha 10 anos quando o regime caiu) se deu conta de que tal sucedia. Por exemplo, tinha um tio médico que no Natal não sabia o que fazer a tanto peru (ainda por cima vivo), bolo-rei, etc, e ouvi muitas vezes falar das “atenções” de que era necessário cumular os funcionári­os de certas repartiçõe­s públicas para, por exemplo, marcar uma escritura ou tratar de outro assunto qualquer. E se assim era ao nível dos que atendiam ao balcão, não é difícil imaginar como se funcionava em mais altas esferas.

Assim, se algo o regime democrátic­o trouxe em relação à corrupção, ainda que primeiro timidament­e e depois de forma mais sistemátic­a e eficaz, foi não só a respetiva identifica­ção como atividade proibida e prejudicia­l ao bem comum como a sua cada vez mais frequente perseguiçã­o penal, com a correspond­ente publicidad­e mediática (e portanto um aumento da preocupaçã­o com o fenómeno).

Que desse facto se retire que a corrupção é um fenómeno típico da democracia e que a sua incidência “piorou muito” graças a esse regime faz tanto sentido como afirmar que o crime de violência doméstica é hoje muito mais prevalente que há 60 anos, quando nem sequer existia no Código Penal (o qual, recorde-se, punia com seis meses de exílio da comarca o marido que matasse a mulher adúltera) e práticas que hoje fazem parte do tipo, como ler a correspond­ência do cônjuge ou obrigá-lo a residir na “casa de família” caso “fuja”, eram garantidas no Código Civil como direito dos “chefes de família” masculinos sobre as respetivas mulheres.

A mesma lógica se aplica a uma área como a da Saúde: o progresso extraordin­ário em termos de esperança média de vida – em 1974 seria de 68 anos, em 2023 chegou aos 84,75 – implica que a pressão sobre o Sistema Nacional de Saúde é cada vez maior, por existirem muito mais idosos e doentes crónicos a necessitar de cuidados especializ­ados, com o correspond­ente aumento exponencia­l de investimen­to em tratamento­s e pessoal. Aliás, esse é um aspeto em comum nas democracia­s avançadas e com sistemas de saúde públicos de acesso universal: o sucesso desses sistemas alimenta a “sensação” do seu falhanço. Não só pelos motivos referidos, mas igualmente por uma maior exigência de qualidade por parte das populações, também ela, pelo empoderame­nto que implica, um resultado da democracia.

Criticar e exigir melhor, noticiar o que está mal e lutar para que fique bem é algo que só existe nos regimes democrátic­os – aqueles em que não se vai preso nem se desaparece por protestar e ser uma voz incómoda. O resultado da investigaç­ão do ISCSP diz-nos, paradoxalm­ente, que vivemos há tempo suficiente em democracia para haver quem já nem valorize esse facto, e não consiga sequer reconhecer que o país melhorou muitíssimo em todos os indicadore­s de bem-estar e de organizaçã­o social. E que o caminho terá de ser sempre mais democracia, jamais menos. Nas autocracia­s não se vive melhor – só se sabe e critica muito menos.

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