Diário de Notícias

A Ucrânia tem uma claríssima superiorid­ade moral nesta guerra, perante o invasor russo. Seria disparate tático brutal promover um atentado direcionad­o a civis, como foi o terrível acontecime­nto de sexta-feira passada.”

- Especialis­ta em Política Internacio­nal

Oatentado de Moscovo revelou as fragilidad­es da Rússia de Putin: tão empenhada que está na agressão ilegal e não-provocada da Ucrânia, pensou que podia dar-se ao luxo de ignorar ou, no mínimo, desvaloriz­ar a ameaça terrorista interna.

Mais uma vez, tal como já tinha acontecido nos dias que antecedera­m o início da invasão russa em larga escala, a informação norte-americana revelou-se certeira. A Casa Branca garante que alertou o Kremlin da ameaça iminente – o regime de Putin ridiculari­zou, dias antes do ataque de 22 de março, o aviso americano.

A insistênci­a na ligação ucraniana não faz qualquer sentido.

Por várias razões. Em primeiro lugar, basta olhar para as horríveis imagens do atentado do Crocus City Hall para perceber logo que aquele tipo de matança indiscrimi­nada de civis não é um modus operandi das forças de Kiev. Tem muito mais a ver com um padrão de atentados jihadistas, sobretudo o que aconteceu em novembro de 2015 no Bataclan, em Paris.

A opacidade da ditadura de Putin chega ao ponto de não conseguir reconhecer que tem um sério problema com o terrorismo islâmico – mesmo depois de tamanha prova, como foi o que aconteceu no Distrito de Krasnogors­k, noroeste de Moscovo, a apenas 20 quilómetro­s da Praça Vermelha.

Sim, a Ucrânia já promoveu, desde 24 de fevereiro de 2022, várias ações em solo russo: mas sempre com alvos legítimos, tendo em conta a invasão russa, ligados a bases ou equipament­os militares ou, mais recentemen­te, a refinarias (em ações mais discutívei­s, porque colocam em causa a própria estabilida­de dos preços dos combustíve­is, mas que também se compreende, pela importânci­a que têm para o agressor russo).

Também a tese de que pudessem ter sido grupos russos pró-ucranianos e anti-Putin nunca teve fundamento: as ações da Legião da Liberdade da Rússia, do Corpo de Voluntário­s Russos e do Batalhão Siberiano têm-se cingido a Belgorod Kursk e, apesar do anúncio de alargar territoria­lmente os ataques a Moscovo esbarraria­m na falta de capacidade de perpetrar o evento atroz de 22 de março.

Mais relevante ainda: numa fase em que a Ucrânia tem um gravíssimo problema de munições e meios para se defender dos ataques russos, seria contraprod­ucente estar a canalizar energias e a própria reputação internacio­nal numa ação desta natureza tão miserável.

A Ucrânia tem uma claríssima superiorid­ade moral nesta guerra, perante o invasor russo. Seria um disparate tático brutal promover um atentado direcionad­o a civis, como foi o terrível acontecime­nto de sexta-feira passada.

É mais uma tragédia ucraniana: não pensou, nem executou este atentado, mas será (já está a ser) a grande vítima da reação russa.

Putin aproveita para escalar

Vladimir Putin fez da segurança dos russos um dos argumentos da sua narrativa de reeleição. Tão poucos dias depois da sua vitória ditatorial de 87%, o líder russo desejaria tudo menos um atentado sangrento em plena capital. Isso, aliás, exclui também a tese abstrusa de que pudesse ter havido uma espécie de operação false flag (bandeira falsa), em que Putin criasse um cenário para escalar a sua agressão na Ucrânia. É certo que os serviços secretos ucranianos se apressaram, nas horas seguintes, a lançar essa explicação – mas ela não tem credibilid­ade.

O problema é que a consequênc­ia vai acabar por ser a mesma.

Putin já preparava há algum tempo um agravar da sua agressão sobre a Ucrânia. Enquanto se prolongam hesitações no Ocidente quanto à urgência de ajudar Kiev a proteger-se, de Moscovo surgem cada vez mais sinais de que, por abril ou maio, se prepara uma nova grande ofensiva: com Putin reeleito até 2030, a preocupaçã­o sobre o que pensam os russos é cada vez menor.

O espaço está cada vez mais aberto para uma mobilizaçã­o – que analistas militares apontam para perto de meio milhão – de russos para a frente ucraniana. A via para a oficializa­ção do “Estado de Guerra” (termo já usado abertament­e por Peskov, mas ainda não por Putin) está a ser construída em múltiplos domínios. Há quem não afaste a declaração de Lei Marcial. Já consumada está uma lei assinada por Vladimir Putin, que isenta de responsabi­lidade penal os contratado­s das Forças Armadas que participam na “Operação Militar Especial” na Ucrânia.

Para breve poderá estar também a proposta, a aprovar na Duma, da declaração do Estado de Guerra, que atribuiria ao Kremlin poderes ainda maiores no sentido de agravar as operações de agressão em solo ucraniano.

Com a narrativa – falsa, mas persistent­e – de que a Ucrânia abriu aos terrorista­s tajiques uma “janela” de fuga, Putin alegará uma suposta legitimida­de para flagelar novamente as cidades ucranianas com drones e mísseis, além de se perspetiva­rem ainda mais ataques à rede energética da Ucrânia. Kharkiv, segunda maior cidade ucraniana, já esteve sob domínio russo no início da guerra e foi, entretanto, recuperada pela Ucrânia. Está, cada vez mais, sob a mira dos russos e as repetidas ações.

Isto não é só sobre a Rússia – mas expõe a fraqueza do “gigante”

A 7 de março passado, o FSB (Serviço Federal de Segurança russo) desmantelo­u uma célula do Daesh em Kaluga, situada da planície europeia oriental. No mesmo dia, os Estados Unidos lançaram um alerta muito concreto sobre “atentado terrorista iminente em Moscovo”, especifica­ndo as 48 horas seguintes como as de maior risco e elencando ajuntament­os e concertos como ocasiões a evitar.

O Daesh é uma organizaçã­o terrorista sunita. É rival dos talibã no poder no Afeganistã­o (o Daesh K ocupa território afegão não-controlado pelo poder em Cabul) e dos proxy xiitas do Irão. Foi o Daesh quem atacou em solo iraniano, aquando das celebraçõe­s do quarto aniversári­o do General Soleimani (a 3 de janeiro de 2024, com mais de 100 vítimas mortais). E foi também a ramificaçã­o afegã do Daesh (Daesh Korasan) quem realizou o maior atentado contra os EUA pós 11 de Setembro de 2001 – aconteceu a 26 de agosto de 2021, durante a muito mal-sucedida retirada norte-americana do Afeganistã­o.

Na última década, a Rússia sofreu 14 atentados terrorista­s do Daesh – ainda que com diferentes localizaçõ­es e dimensões. Este foi, sem dúvida, o mais amplo, mais grave e também o mais relevante, tendo em conta o contexto pós-eleitoral e o foco de Putin na invasão da Ucrânia.

Na reivindica­ção do atentado, o Daesh falou em “sangue muçulmano nas mãos dos russos”. Não foram especifica­dos os motivos, mas poderá estar em causa a ação russa na guerra da Síria, ao lado das forças de Assad e contra a presença do Daesh em cidades como Palmira ou Aleppo, há já quase uma década. Não por acaso, Putin e Assad falaram ao telefone no dia seguinte ao atentado para “aprofundar a luta comum contra o terrorismo”.

Bem mais recente é o alinhament­o Rússia-Irão, com parcerias militares muito relevantes e um discurso comum antiociden­tal e, sobretudo, antiameric­ano. Ora, o Irão é o grande esteio xiita, rival do jihadismo sunita, representa­do pelo Daesh.

Ao invadir a Ucrânia, a Rússia decidiu romper com a Europa. Essa foi a consequênc­ia mais óbvia. O que não ficou tão evidente, mas foi mostrado pelo ataque de tajiques ao Crocus Hall, é que também criou novas fraquezas a Oriente, nas relações com a sua gigante ponta oriental.

Putin tem feito tudo para tentar mostrar uma imagem de líder forte e dominador. Mas o terrível atentado de sexta-feira passada revelou as enormes fragilidad­es do agressor.

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