“Um trabalho precário parece oferecer uma esperança de mobilidade social, mas quase nunca se realiza”
Jovem escritor acaba de lançar em Portugal O que é meu, livro que relata histórias e aventuras vividas pelo pai enquanto camionista durante décadas no Brasil.
Lisboa foi o primeiro lugar fora do país de origem no qual o escritor brasileiro esteve a divulgar o seu livro. Em conversa com o DN, o jovem autor descreve o papel que assumiu ao tornar-se guardião das memórias do pai, ao mesmo tempo que cuidava do progenitor com cancro.
Como se sente ao estrear-se no mundo da literatura?
Foi uma surpresa muito grande para mim. O livro teve um acolhimento muito rápido, sendo contratado para 10 editoras internacionais antes mesmo de ser lançado no Brasil. E ainda vai chegar em muito mais do que 10 idiomas, porque algumas dessas editoras vão publicar em vários países. Tudo foi uma surpresa, mas ainda não entendo muito bem essa posição de escritor internacional, que é muito bem-vinda. Penso que não se deve só ao livro em si, acho que deve haver alguma coisa na escrita, porque acho que o livro toca. Apesar de ser uma história muito individual, pessoal, de um sujeito, é uma história de um país. Não é preciso se interessar pela vida dos camionistas, nem pelo Brasil, para necessariamente ter algum interesse no livro, porque há dois temas que são muito universais na literatura: as viagens e a relação entre pais e filhos. É um livro sobre meu pai, mas também é, sobretudo, um livro sobre a nossa relação. Um filho que escreve sobre um pai, um tema universal. Um camionista é um trabalhador essencial para o Brasil, isso ficou claro em vários momentos da história recente do país. Mas é um trabalho quase invisível, que a maioria das pessoas não o valorizam. Isso acontece também com outras profissões e também acontece muito com os imigrantes, aqui na Europa. Acha que isso também é uma ligação?
Sem sombra de dúvida. Um dos motivos fundamentais é exatamente mostrar a importância dos trabalhadores para a construção do país. O meu pai usou essa mesma expressão num determinado momento de herói invisível, e eu transcrevo isso no livro. Ele mesmo se define como um herói invisível, não falando só de si, mas desse mundo de trabalhadores que acordam às 4.00 da manhã, trabalham até o final da noite de forma muito brutal, com consequências muito negativas para a própria saúde, para o próprio corpo, e que sem os quais é impossível que um país exista. A história sinaliza também uma realidade que é vivida por muita gente no mundo todo, uma situação em que um trabalho precário parece oferecer uma esperança de mobilidade social, de se dar bem na vida, de ganhar dinheiro, que quase nunca se realiza.
É sociólogo e assistiu, ao lado do seu pai, às várias manifestações de camionistas no Brasil na última década. Como foi a experiência, já que tinham pontos de vista tão distintos?
Eu acho que nós não entendemos ainda exatamente aquele contexto, não só a greve, mas tudo que aconteceu naquele ano [2018] e nos anos anteriores na realidade brasileira. Ainda vão ser necessários muitos anos, muito estudo e também muita literatura, cinema, e uma reflexão intelectual e artística para entendermos as transformações do Brasil, pelo menos desde 2013. Tivemos no Brasil, grandes manifestações populares, as Jornadas de Junho de 2013, que estão um pouco no mesmo contexto do que aconteceu em outros países, como a Primavera Árabe, e isso trouxe transformações muito significativas para a política brasileira que reverberam até hoje. Uma delas foi exatamente essa onda de mobilizações que acontecem muito rápido e depois se desmantelaram, mas com impactos muito marcantes na política. O que aconteceu com os camionistas foi isso. Com uma particularidade que foi, os camiões parando, um país para, porque não tem abastecimento de combustível, de alimentos, de medicamentos. Isso fez com que eles, naquele momento, pudessem ameaçar, pela primeira vez na História, pessoas em posição de poder. Mas quem eram exatamente esses sujeitos, ou melhor, sabemos quem foram, mas quais eram as formas de organização? Existiam interesses que não eram dessa categoria, tudo isso acho que ainda está um pouco a ser explicado, e eu acho que não é com um vocabulário ou com outro que a gente entende, mas é com uma pluralidade de olhares e de vocabulários.
No livro descreveu a relação da família que fica com quem trabalha longe, uma relação que é sempre de espera e já sabendo da próxima partida. O que é que isso lhe ensinou?
Acho que isso deixa marcas muito profundas na vida, tanto daquele que vai e volta, quanto daqueles que esperam. Porque esses regressos, como eu escrevo no livro, e disse-o com muita sinceridade, são marcados por promessas. É o retorno de uma pessoa que você ama, que você espera, mas também por um pequeno terremoto. No caso do meu pai, a preocupação económica ficava mais clara quando ele chegava, porque o dinheiro raramente chegava junto ou chegava muito pouco. Então aquilo que a gente achava que ia apaziguar um pouco a situação, e eu digo isso porque eu comecei a observar isso desde muito pequeno, porque eu observava a minha mãe, nunca se apaziguava. Então era sempre uma expectativa, uma alegria e uma frustração tudo misturado. Eu acho que isso deixa marcas para uma vida toda, talvez algumas que eu até nem tenha entendido ainda.
E o tempo de espera da sua mãe? Ela cita que dos 9 anos do namoro foram na verdade 2, porque o seu pai ficava muito tempo ausente.
A minha mãe teve de carregar um camião às costas, porque ela criou dois filhos e, antes disso, enfim, teve o namorado à distância. Ela lidou com isso sofrendo, certamente. Mas também fazendo o que ela sempre fez, que é trabalhar e escrever, também. Isso é muito interessante. Ela escreveu um diário do namoro para além de trabalhar muito como costureira e também em casa. Teve mil ocupações ao longo do tempo. Penso que o jeito como ela lidava [com isso] é o que talvez se assemelhe um pouco, em um certo sentido, ao que muitas mães que têm de criar seus filhos, entre aspas, sozinhas, passam, que não era exatamente sozinha, porque o pai existia, mas com uma ausência muito presente e constante. Tem alguma semelhança entre a situação de uma esposa de um camionista, de um viajante e mulheres que criam seus filhos sem o apoio dos pais dos filhos.
A escrita foi feita durante a pandemia. Olhando para trás para esse passado, que é muito presente, como foi esse período para você?
É curioso, porque não é um livro que trata da pandemia, mas, de certa forma, é também um dos livros pandémicos. Tem um ar na minha escrita, que é esse risco
maior que nós vivemos nessa época da pandemia do Coronavírus. Isso teve impactos muito marcantes na vida da minha família e na vida do meu pai, particularmente. O tratamento dele contra o cancro demorou a começar por conta da pandemia. O Hospital do Cancro de Jaú, no interior de São Paulo, virou um hospital covid, tudo que não era uma cirurgia de urgência foi deixado para trás. Então, tínhamos muito receio de ir para casa, de levar o vírus, porque ele foi diagnosticado quando ainda não havia vacina. E mais do que isso, no Brasil, tínhamos um Governo que se aliou ao vírus. Isso teve impacto em todos nós, seja porque pessoas foram contaminadas e muitas morreram, ou seja, pelo medo da contaminação, ou seja, pelo impacto na vida dos profissionais de saúde. Enfim, de milhares de formas. Comento logo no começo do livro, senti-me assim, entre duas devastações, uma que assolava o corpo do meu pai e outra que atingia todos nós: um Governo fascista aliado a um vírus.
Que define como “macabro experimento político do grande mal, que escancara os dentes para a pilha de mortos, que nem mais conseguimos contar”.
Sim, isso também me marcou bastante. Fiz questão de escrever sobre a situação que o meu país vivia, de como o Governo brasileiro agia. Acho que isso também fez com que eu estivesse aberto para que a realidade em torno de mim entrasse na escrita, para além da questão de saúde do meu pai. Alguns trechos talvez até envelheçam, mas desponta o momento em que foi escrito, que foi o momento dessa angústia e foi uma escolha minha deixar isso. Também me tocou muito esse trecho do Philip Roth, que fala como é descrever cuidar de uma pessoa enferma. Não uma pessoa qualquer, cuidar dos nossos pais enfermos. Como foi essa experiência?
Foi completamente transformadora na minha vida, na relação com o meu pai e na relação com a saúde. A compreensão de como funcionam os cuidados com uma pessoa no auge da sua fragilidade e de como é que esses cuidados são, muitas vezes, invisíveis, mas que tem um valor tremendo. Uma pessoa nessa sio
“Ele mesmo se define como um herói invisível, não falando só de si, mas desse mundo de trabalhadores que acordam às 4.00 da manhã, trabalham até o final da noite de forma muito brutal.”
tuação às vezes exige cuidado quase integral. É a família que o faz, mas também é o universo de profissionais que passei a valorizar ainda mais. Passei a valorizar muitíssimo as estruturas das enfermeiras e as técnicas da enfermagem que é quem tem esse cuidado mais direto com o corpo do paciente. Em geral eram as profissionais mais dedicadas, mais delicadas também. Mais atentas. E eu falo no feminino porque são muito mais mulheres do que homens. Acho que transformou também a relação de intimidade com o meu pai, eu conheci muito mais o meu pai no momento dessa fragilidade. A fragilidade é um momento em que se pode conhecer muito melhor uma pessoa, apesar de todas as dificuldades. Por tudo isso, foi muito transformador para a minha vida.
Acha que ainda existe um certo tabu da parte de um filho homem cuidar do pai? As mulheres são sempre colocadas na posição obrigatória de cuidadoras. Como é que foi para você essa posição de homem com homem?
É curioso, porque muitas vezes no hospital ou quando eu estava com meu pai em algum lugar, como ir à farmácia, eu ou o meu irmão recebemos elogios e comentários. Ah, que maravilhoso ver um filho cuidando de um pai. Mas a realidade sempre foi das mulheres, não só filhas, mas companheiras, mães ou profissionais. É entendido quase como natural que uma esposa cuide de um marido doente, o contrário, não. O que acontece muitas vezes é o marido simplesmente desaparecer. Para mim, e para o meu irmão, foi algo que veio de uma forma muito natural. Porque não houve um grande questionamento. Claro que houve muita dificuldade, cansaço físico e mental, a necessidade de cancelar muitos compromissos, de mudar o rumo de várias coisas da vida, gastos, por exemplo, mas acho que nenhum dos dois se questionou se aquele deveria ser o nosso lugar ou não. E entendo que acontece um pouco no arrepio de conversas de género. Nós entendemos que cuidado é uma coisa que mulher faz e homem não faz. O que é mais uma forma de violência, de aumento do trabalho sobre as mulheres.
Conscientemente, não. Eu acho que é impossível prever quando isso vai acontecer e de que forma vai acontecer, mas preparamo-nos para isso como nos preparamos para viver. Entendendo que não temos controlo sobre a imensa maioria das coisas. Sobretudo as coisas importantes que acontecem sobre a nossa vida. Elas simplesmente acontecem e aí descobrimo-nos nessas situações.
Aqui também entra um outro ponto. Que muitas vezes, ao longo da vida, da vida sã, digamos, há muitos conflitos entre pais e filhos, conflitos familiares. Se a vossa relação tivesse sido conflituosa, teria cuidado da mesma maneira?
Acho que certamente não seria da mesma maneira, porque seria uma outra relação, um outro pai, um outro filho, e eu seria outra pessoa. Gosto de imaginar que cuidaria igualmente. Mas entendo a dor que deve ser para um filho que, por exemplo, sofreu violência dos pais, que foi expulso de casa, que tem crenças radicalmente diferentes, como isso coloca um desafio ainda maior. Solidarizo-me com aqueles que enfrentam essas situações e que conseguem fazer o melhor. Nesse sentido, fui privilegiado, porque era uma relação com alguns problemas, mas marcada, sobretudo, pelo carinho, pelo amor, pelo cuidado. Se fosse diferente, certamente teria sido mais difícil.