Onde eu estava
nasceu em Matosinhos, no ano de 1956. É economista e gestor.
Em março de 1974 era aluno do Liceu Garcia de Orta, no Porto, e estava suspenso por um período de 30 dias, apurada a minha participação num “levantamento estudantil” tão sofisticado quanto barrar a entrada na sala de aula da professora de Inglês, por considerarmos a senhora bastante incompetente para as funções, opinião de resto avalizada por um dos colega de turma – a famosa Turma K – descendente de ingleses. Mudara-me para o tal liceu, deixando a secção de Matosinhos do D. Manuel II, por se considerar que era, à época, experimental, aberto, democrático. E, sobretudo, misto.
Era, portanto, um jovem de 17 anos, que andava no 7.º ano do liceu, e o castigo surpreendeu professores e familiares, atendendo a que era um aluno exemplar.
Nasci em Matosinhos, cidade que nos Anos 70 não passava de um subúrbio do Porto, marcado pela indústria da pesca. O meu pai negociava peixe, enquanto a minha mãe, em casa, tratava dos filhos, dois rapazes e uma rapariga, sendo eu o mais novo. A personalidade singular da minha família, e minha referência desde sempre, foi Manuel Dias da Fonseca, irmão de meu pai e meu padrinho, um homem da Cultura, melómano agregador da intelectualidade da época, não só portuense. Cresci nessas tertúlias em que pontuaram Óscar Lopes e Lopes Graça, Eugénio de Andrade e Jorge de Sena. E na companhia dos grandes compositores.
As viagens tiveram um impacto enorme no meu crescimento. A primeira delas levou-me a Paris, Bruxelas e Amesterdão, na companhia de um amigo, filho do dono da mercearia defronte a minha casa. Para nós, miúdos de 14 anos, a Europa começava apenas em França. Para trás ficava a escuridão. Ainda mal saídos de Espanha e já tudo nos parecia diferente. Raparigas de minissaia e rapazes de cabelo comprido, televisão a cores com vários canais, a colorida população hippie, coisa que não se via em Matosinhos e apenas muito raramente no Porto. Basta dizer que em 1974 o meu avô continuava a não gostar que a minha mãe, já casada e com filhos, vestisse calças. Portugal era, para mim, um buraco negro muito longe da luz de Paris, cidade onde vi filmes como Laranja Mecânica, numa sala de cinema a abarrotar de fumo.
Em 1973, ao lado do meu irmão, percorri a Escandinávia. No caminho, assisti a um episódio que me marcou muito. No Sud Express, em Vilar Formoso, a polícia expulsou do comboio uma mulher que ia no nosso compartimento, abandonando aquela mãe com os filhos na estação, apenas porque não levava autorização do marido para viajar. O mesmo nos teria acontecido caso o meu irmão e eu não tivéssemos apresentado a licença para viagem, passada pelo Distrito de Recrutamento e Mobilização, obrigatória para os mancebos que viajassem. Devo dizer que na Escandinávia, a certa altura, vimo-nos obrigados a passar por brasileiros, tal a forma agreste como fomos recebidos quando nos dissemos portugueses. Portugal era igual a ditadura. Numa visita ao edifício de um sanatório projetado por Alvar Aalto, o médico a quem dissemos de onde íamos respondeu-nos com duas palavras: guerra e Salazar.
Recordo desses anoso interrogatóriona PIDE,ne cessá rioàobtençã ode um vis topara um país do outro lado da Cortina de Ferro, viagem quem e permitiu conhecer, na companhia do meu tio, a cidade de Budapeste.
Voltando a Matosinhos. Em março de 1974, a vida continuava sem sobressaltos, mantinha o bigode, e apesar de suspenso passava o dia no Porto. Os cafés, os amigos, as compras – compravam-se Lois de contrabando numa loja da Rua do Rosário, onde se entrava e saía o mais disfarçadamente possível –, e o desejo imenso de voltar à sensação que tivera em Paris, a primeira vez que bebi Coca-cola, tinha 14 anos: sou livre.
“Na Escandinávia vimo-nos obrigados a passar por brasileiros, tal a forma agreste como fomos recebidos quando nos dissemos portugueses.”