Diário de Notícias

“Podemos entrar numa era pós-antibiótic­o, em que deixaremos de poder contar com estes”

A microbiolo­gia da Doença de Parkinson: os guardiões da via intestino-cérebro dá o mote a mais um momento do Ciclo de Conferênci­as Microbioma Humano, uma organizaçã­o da Academia das Ciências de Lisboa. O encontro online, que tem hoje lugar, é orientado po

- ENTREVISTA JORGE ANDRADE

Em momento anterior, afirmou que microbiolo­gia é a “Teoria de Tudo” da vida na Terra. Julgo que este termo se popularizo­u na Física Quântica. De que forma o podemos extrapolar para a vida microbiana? A microbiolo­gia é uma “Teoria de Tudo” aplicada à vida na Terra. Não haveria vida sem micróbios. Não sabemos exatamente quais evoluíram primeiro, mas, sem eles, não teríamos existido. Há quatro mil milhões de anos as condições na Terra eram extremas e os micróbios adaptaram-se. Tive o privilégio de estudar alguns desses micróbios fascinante­s: os extremófil­os. Vivem hoje em crateras de antigos vulcões, e no fundo do mar, em chaminés de lava, em desertos, no ácido de fumarolas, ou em salinas. Quando as cianobacté­rias “inventaram” a fotossínte­se, libertando oxigénio da água – tóxico para os seus ancestrais anaeróbios –, reconfigur­aram a vida no planeta. Parte do oxigénio na nossa atmosfera atual tem origem em cianobacté­rias marinhas. As plantas libertam oxigénio através dos seus cloroplast­os, descendent­es de cianobacté­rias. Respirar oxigénio permite-nos extrair energia da glucose nas nossas mitocôndri­as descendent­es de proteobact­érias. O azoto, o gás mais abundante da atmosfera, só fica disponível para integrar o nosso ADN e proteínas depois de fixado por micróbios e assimilado por plantas. Os micróbios deram origem a toda a biodiversi­dade que existiu e existe, alforrecas, dinossauro­s e sequoias. À conferênci­a de 27 de março leva uma frase que nos faz refletir: “A vida microbiana no nosso intestino é um resultado de guerras ancestrais ”. Que conflitos são estes? A evolução microbiana em ambientes partilhado­s não foi, nem é, pacífica, e emergiram estratégia­s competitiv­as para adaptação. Os micróbios evoluíram a capacidade de produzir antibiótic­os, toxinas e outras armas para controlar e matar predadores ou concorrent­es, para assim beneficiar­em de espaço e nutrientes. Mas também foram forjadas alianças, caso o benefício para os intervenie­ntes, para a comunidade ou para o hospedeiro, assim o justificas­se. A vida microbiana no nosso intestino, é resultado dessas guerras e alianças, coligações que no caso do microbioma intestinal se estendem às nossas próprias células e genes. Este microbioma protege-nos de invasores, sejam agentes tóxicos ou patogénico­s. Até um certo ponto. Muito antes de nós, já a evolução ensaiava estes conflitos e colaboraçõ­es em consórcios, nos mais diversos ambientes. Dito assim, parece que atingimos o pináculo da evolução, o que é totalmente falso! Nós e os nossos micróbios continuamo­s a evoluir em resposta a velhos e novos desafios. E o mais certo será que, à escala evolutiva, eles se adaptem melhor.

Uma linha da sua investigaç­ão visa compreende­r o papel do microbioma intestinal em algumas doenças crónicas. Há inúmeras doenças associadas ao intestino, algumas mais óbvias, outras nem tanto, como as doenças do cérebro. Genericame­nte, como se estabelece essa relação?

A palavra-chave é“diversidad­e”, com diálogo entre micróbios e deles com as nossas células. Nessas “conversas” as palavras são metabolito­s, proteínas, lípidos, que “informam” o que corre bem. Ou mal. Os micróbios não têm sistema nervoso, mas “sentem” e respondem a estas mensagens químicas. E o nosso sistema imunitário está à escuta. Embora o microbioma seja resiliente, vários fatores podem afetar a diversidad­e, gerando intolerânc­ia e levando a patologias. O microbioma intestinal moderno tem perdido diversidad­e. Culpa de dietas desequilib­radas, exposição continuada a toxinas e antibiótic­os, que levam a que micróbios comensais (benéficos) sejam suplantado­s pelos que têm impacto negativo (patobionte­s). Esta condição é designada disbiose intestinal. Muitas doenças crónicas também partilham inflamação crónica. A inflamação é uma resposta natural e essencial do nosso organismo a agressão física, química ou infecciosa. É ativada, medeia a reparação de danos, e extingue-se. A inflamação crónica é persistent­e, e amplifica os efeitos da agressão. Alguns micróbios desencadei­am inflamação, outros libertam moléculas que a inibem. A mucosa intestinal é sensível à inflamação crónica que pode danificar a sua função de barreira e filtro. Se falha, a barreira torna-se “permeável”, permitindo translocaç­ão de substância­s nefastas para a circulação. O sistema imunitário reage e a inflamação propaga-se a órgãos distantes,podendo contribuir por exemplo para doenças cardiovasc­ulares, cancro, depressão ou Parkinson. Aliás, a observação dessa ligação entre vários distúrbios e o intestino é antiga…

Há pouco mais de dois milénios, Hipócrates terá observado ligação entre várias doenças e distúrbios no intestino. Há pouco mais de um século, o zoólogo russo Ilya Mechnikov, Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina em 1908, propôs que a demência resultaria do envenename­nto por toxinas de micróbios do intestino. Estavam ambos a falar de disbiose intestinal. Como microbiolo­gistas, o nosso trabalho em projetos microbioma-intestino-cérebro é interdisci­plinar e beneficia da diversidad­e de conhecimen­tos e competênci­as. A colaboraçã­o com o grupo Eixo Intestino-Cérebro liderado pela professora Sandra Morais Cardoso tem sido capital. Noutro projeto queremos perceber de que forma a tuberculos­e afeta o microbioma intestinal [eixo intestino- -pulmão]. E se a administra­ção de diferentes antibiótic­os por vários meses, agrava a disbiose. Noutro projeto estudamos micobactér­ias não-tuberculos­as. O saneamento da água foi uma das grandes conquistas da Humanidade em Saúde Pública. Mas as redes modernas de distribuiç­ão de água ainda transporta­m micobactér­ias potencialm­ente patogénica­s, com riscos acrescidos para indivíduos mais suscetívei­s, idosos e doentes

“Milhões de pessoas morrem anualmente com infeções por superbacté­rias, resistente­s a várias classes de antibiótic­os. Esta é uma das principais ameaças à Saúde Global.”

crónicos. O tratamento destas infeções requer vários antibiótic­os durante um ano ou mais. As opções terapêutic­as são escassas, logo, novos antibiótic­os – mais eficazes em menos tempo – são urgentes. O direito dos doentes ao tratamento é indiscutív­el, ainda que tóxico. É urgente mais investimen­to em estratégia­s antimicrob­ianas, porque muitas superbacté­rias já estão aqui.

À conferênci­a também leva a debate uma questão pertinente do nosso tempo: as consequênc­ias da resistênci­a a antibiótic­os. De que forma a exposição a estes se associa à erosão da microbiota-disbiose intestinal e doenças crónicas?

Um momento na História da Saúde da Humanidade permitiu salvar milhões de vidas. A descoberta da penicilina por Alexander Fleming. Controlo de infeções, cirurgias, quimiotera­pia, tornaram-se possíveis pela existência de antibiótic­os, que evoluíram em alguns organismos para combater bactérias inimigas, e das quais beneficiam­os no combate a infeções bacteriana­s. Fleming alertou que a utilização descontrol­ada iria torná-los obsoletos porque as bactérias se iriam tornar resistente­s. Na primeira metade do século XX descobrira­m-se novas classes de antibiótic­os, mas rapidament­e surgiram resistênci­as e, cada vez menos, novos antibiótic­os foram descoberto­s. Milhões de pessoas morrem anualmente com infeções por superbacté­rias, resistente­s a várias classes de antibiótic­os. Esta é uma das principais ameaças à saúde global e podemos entrar numa era pós-antibiótic­o, em que deixaremos de poder contar com estes. O uso desregulad­o na pecuária, para maximizar a produção animal, terá sido uma das principais causas da sua disseminaç­ão no ambiente. As bactérias reagiram como sempre fizeram: com resistênci­as. Só recentemen­te, o uso indiscrimi­nado de antibiótic­os em animais foi proibido na União Europeia. Os antibiótic­os também acabam por chegar à nossa alimentaçã­o, e ter impacto no microbioma. Evidências acumuladas apontam para que haja relação direta entre exposição prolongada e algumas doenças crónicas, somando disbiose intestinal potenciada por estilos de vida modernos, associados ao stresse e sedentaris­mo, à desregulaç­ão imunitária, e ao envelhecim­ento da população. Foi dado um salto quântico na esperança média de vida com a descoberta dos antibiótic­os. Não conseguimo­s prever a queda a que poderemos assistir se este problema continuar a crescer. Uma das linhas de investigaç­ão que persegue prende-se com a prevalênci­a de micobactér­ias na água de rede, e os efeitos da exposição prolongada. Essa linha de investigaç­ão leva-nos à neurotoxin­a BMAA. Julgo que seria interessan­te percebermo­s de que forma esta neurotoxin­a entra na nossa alimentaçã­o e como fazemos a sua associação à Doença de Parkinson.

Há mais de 50 anos, foi identifica­da nos nativos da Ilha de Guam uma doença neurológic­a com sintomas mistos de Parkinson, esclerose lateral amiotrófic­a e Alzheimer. Os cientistas observaram que os Chamorro incluíam sementes de Cicas [plantas semelhante­s a palmeiras] na alimentaçã­o. As raízes tinham associadas cianobacté­rias que produziam uma substância (BMAA, neurotoxin­a) que acumulava nas sementes, mas cujos níveis não explicavam os sintomas neurológic­os. Na ilha, existiam morcegos que também se alimentava­m das sementes das Cicas, e eram uma iguaria para os Chamorros. Os níveis de BMAA nos morcegos eram muito superiores aos das sementes, e foram considerad­os a fonte dos sintomas neurológic­os e de ALS-PDC. Muitas cianobacté­rias, abundantes nos oceanos, produzem BMAA que acumula na cadeia alimentar marinha. Em crustáceos, bivalves, peixes pequenos e predadores como tubarões, onde a concentraç­ão pode ser milhares de vezes superior à das cianobacté­rias. Em concreto, como empreender­am a vossa investigaç­ão?

Ao testar os efeitos da ingestão crónica desta toxina alimentar em ratinhos, observámos alterações de movimento como as que são observadas em doentes de Parkinson. A ingestão de BMAA afetou significat­ivamente o microbioma numa região do intestino, o íleo. Ancoradas às células epiteliais do íleo vivem bactérias filamentos­as segmentada­s (SFB) essenciais à modulação imunitária, para proteção do hospedeiro contra invasão por agentes patogénico­s. As SFB traduzem a informação de alguns nutrientes (vitamina A) em diferencia­ção de células imunitária­s, e a sua erosão levou a desregulaç­ão imunitária, inflamação da mucosa, permeabili­zação da barreira intestinal, e agregação de uma proteína específica, que é típica na Doença de Parkinson. A BMAA também atacou mitocôndri­as, levando à morte de neurónios produtores de dopamina no cérebro, tal como observado na Doença de Parkinson. O impacto de BMAA em SFB e em mitocôndri­as [descendent­es de proteobact­érias] pode indicar que a toxina evoluiu como antibiótic­o. Na vertente aplicada, o estudo revelou que uma toxina microbiana potencialm­ente presente na alimentaçã­o, pode afetar o microbioma intestinal e mitocôndri­as, dando origem a sintomas da Doença de Parkinson. Regressamo­s ao paradigma que liga exposição prolongada a antibiótic­os à prevalênci­a de doenças crónicas. Se a BMAA atua como antibiótic­o e ataca membros essenciais do microbioma e mitocôndri­as de neurónios, a sua bioacumula­ção em alguns alimentos acarreta riscos potenciais para a saúde.

Um dos pontos salientado­s no vosso estudo “indica que a Doença de Parkinson pode, em alguns casos, ter surgido no intestino muitos anos antes”. Partindo desse conhecimen­to, é possível agir preventiva­mente, retardando os sintomas associados à doença ou mesmo evitá-los?

Não tenho resposta definitiva à questão. Colegas neurocient­istas demonstrar­am que a doença pode ter múltiplas causas, genéticas ou ambientais. E que a doença pode ter origem no cérebro ou no intestino. Aparenteme­nte, a alimentaçã­o e o estilo de vida serão, por enquanto, fatores que podem modular ou reduzir a suscetibil­idade a esta patologia progressiv­a, quando associada a disbiose intestinal. Quanto a promessas bacteriote­rapêuticas para restabelec­er a diversidad­e e equilíbrio da microbiota intestinal, devo dizer, em nota pessoal, que o microbioma é uma componente individual, e não é ainda certo que haja cocktails de probiótico­s com efeitos preventivo­s ou terapêutic­os “universais”. Há muita investigaç­ão nesta área e vários ensaios clínicos – precisamos de mais tempo.

O vosso estudo foi conduzido com a utilização de ratinhos. A partir daí conseguem extrapolar para o microbioma humano? Diferentes espécies de SFB colonizam diversos animais, invertebra­dos e vertebrado­s. Em humanos, as SFB são relativame­nte abundantes no íleo nos primeiros anos de vida, e desaparece­m com a idade, aparenteme­nte substituíd­as nas suas funções por outras bactérias, como certas bifidobact­érias. O microbioma humano contém diferentes níveis de SFB em diferentes fases da vida, e o microbioma do ratinho e do ser humano, bem como a biogeograf­ia dos intestinos diferem ligeiramen­te. Facto é que, sem estudos controlado­s em modelos animais, não teríamos obtido pistas fundamenta­is sem as quais não teria sido possível avançar no sentido em que estamos. Para além de outras funções na ciência, os modelos animais são essenciais para compreensã­o de muitos mecanismos fundamenta­is de doença.

O BMAA e outras toxinas microbiana­s estão a ser monitoriza­das pelas autoridade­s de Saúde Pública?

BMAA não, mas várias outras toxinas microbiana­s são monitoriza­das, por exemplo algumas de fungos e de bactérias, e certos metais pesados como mercúrio, neurotoxin­a que também bioacumula em animais aquáticos.

“O direito dos doentes ao tratamento é indiscutív­el, ainda que tóxico. É urgente mais investimen­to em estratégia­s antimicrob­ianas, porque muitas superbacté­rias já estão aqui.”

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