“Podemos entrar numa era pós-antibiótico, em que deixaremos de poder contar com estes”
A microbiologia da Doença de Parkinson: os guardiões da via intestino-cérebro dá o mote a mais um momento do Ciclo de Conferências Microbioma Humano, uma organização da Academia das Ciências de Lisboa. O encontro online, que tem hoje lugar, é orientado po
Em momento anterior, afirmou que microbiologia é a “Teoria de Tudo” da vida na Terra. Julgo que este termo se popularizou na Física Quântica. De que forma o podemos extrapolar para a vida microbiana? A microbiologia é uma “Teoria de Tudo” aplicada à vida na Terra. Não haveria vida sem micróbios. Não sabemos exatamente quais evoluíram primeiro, mas, sem eles, não teríamos existido. Há quatro mil milhões de anos as condições na Terra eram extremas e os micróbios adaptaram-se. Tive o privilégio de estudar alguns desses micróbios fascinantes: os extremófilos. Vivem hoje em crateras de antigos vulcões, e no fundo do mar, em chaminés de lava, em desertos, no ácido de fumarolas, ou em salinas. Quando as cianobactérias “inventaram” a fotossíntese, libertando oxigénio da água – tóxico para os seus ancestrais anaeróbios –, reconfiguraram a vida no planeta. Parte do oxigénio na nossa atmosfera atual tem origem em cianobactérias marinhas. As plantas libertam oxigénio através dos seus cloroplastos, descendentes de cianobactérias. Respirar oxigénio permite-nos extrair energia da glucose nas nossas mitocôndrias descendentes de proteobactérias. O azoto, o gás mais abundante da atmosfera, só fica disponível para integrar o nosso ADN e proteínas depois de fixado por micróbios e assimilado por plantas. Os micróbios deram origem a toda a biodiversidade que existiu e existe, alforrecas, dinossauros e sequoias. À conferência de 27 de março leva uma frase que nos faz refletir: “A vida microbiana no nosso intestino é um resultado de guerras ancestrais ”. Que conflitos são estes? A evolução microbiana em ambientes partilhados não foi, nem é, pacífica, e emergiram estratégias competitivas para adaptação. Os micróbios evoluíram a capacidade de produzir antibióticos, toxinas e outras armas para controlar e matar predadores ou concorrentes, para assim beneficiarem de espaço e nutrientes. Mas também foram forjadas alianças, caso o benefício para os intervenientes, para a comunidade ou para o hospedeiro, assim o justificasse. A vida microbiana no nosso intestino, é resultado dessas guerras e alianças, coligações que no caso do microbioma intestinal se estendem às nossas próprias células e genes. Este microbioma protege-nos de invasores, sejam agentes tóxicos ou patogénicos. Até um certo ponto. Muito antes de nós, já a evolução ensaiava estes conflitos e colaborações em consórcios, nos mais diversos ambientes. Dito assim, parece que atingimos o pináculo da evolução, o que é totalmente falso! Nós e os nossos micróbios continuamos a evoluir em resposta a velhos e novos desafios. E o mais certo será que, à escala evolutiva, eles se adaptem melhor.
Uma linha da sua investigação visa compreender o papel do microbioma intestinal em algumas doenças crónicas. Há inúmeras doenças associadas ao intestino, algumas mais óbvias, outras nem tanto, como as doenças do cérebro. Genericamente, como se estabelece essa relação?
A palavra-chave é“diversidade”, com diálogo entre micróbios e deles com as nossas células. Nessas “conversas” as palavras são metabolitos, proteínas, lípidos, que “informam” o que corre bem. Ou mal. Os micróbios não têm sistema nervoso, mas “sentem” e respondem a estas mensagens químicas. E o nosso sistema imunitário está à escuta. Embora o microbioma seja resiliente, vários fatores podem afetar a diversidade, gerando intolerância e levando a patologias. O microbioma intestinal moderno tem perdido diversidade. Culpa de dietas desequilibradas, exposição continuada a toxinas e antibióticos, que levam a que micróbios comensais (benéficos) sejam suplantados pelos que têm impacto negativo (patobiontes). Esta condição é designada disbiose intestinal. Muitas doenças crónicas também partilham inflamação crónica. A inflamação é uma resposta natural e essencial do nosso organismo a agressão física, química ou infecciosa. É ativada, medeia a reparação de danos, e extingue-se. A inflamação crónica é persistente, e amplifica os efeitos da agressão. Alguns micróbios desencadeiam inflamação, outros libertam moléculas que a inibem. A mucosa intestinal é sensível à inflamação crónica que pode danificar a sua função de barreira e filtro. Se falha, a barreira torna-se “permeável”, permitindo translocação de substâncias nefastas para a circulação. O sistema imunitário reage e a inflamação propaga-se a órgãos distantes,podendo contribuir por exemplo para doenças cardiovasculares, cancro, depressão ou Parkinson. Aliás, a observação dessa ligação entre vários distúrbios e o intestino é antiga…
Há pouco mais de dois milénios, Hipócrates terá observado ligação entre várias doenças e distúrbios no intestino. Há pouco mais de um século, o zoólogo russo Ilya Mechnikov, Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina em 1908, propôs que a demência resultaria do envenenamento por toxinas de micróbios do intestino. Estavam ambos a falar de disbiose intestinal. Como microbiologistas, o nosso trabalho em projetos microbioma-intestino-cérebro é interdisciplinar e beneficia da diversidade de conhecimentos e competências. A colaboração com o grupo Eixo Intestino-Cérebro liderado pela professora Sandra Morais Cardoso tem sido capital. Noutro projeto queremos perceber de que forma a tuberculose afeta o microbioma intestinal [eixo intestino- -pulmão]. E se a administração de diferentes antibióticos por vários meses, agrava a disbiose. Noutro projeto estudamos micobactérias não-tuberculosas. O saneamento da água foi uma das grandes conquistas da Humanidade em Saúde Pública. Mas as redes modernas de distribuição de água ainda transportam micobactérias potencialmente patogénicas, com riscos acrescidos para indivíduos mais suscetíveis, idosos e doentes
“Milhões de pessoas morrem anualmente com infeções por superbactérias, resistentes a várias classes de antibióticos. Esta é uma das principais ameaças à Saúde Global.”
crónicos. O tratamento destas infeções requer vários antibióticos durante um ano ou mais. As opções terapêuticas são escassas, logo, novos antibióticos – mais eficazes em menos tempo – são urgentes. O direito dos doentes ao tratamento é indiscutível, ainda que tóxico. É urgente mais investimento em estratégias antimicrobianas, porque muitas superbactérias já estão aqui.
À conferência também leva a debate uma questão pertinente do nosso tempo: as consequências da resistência a antibióticos. De que forma a exposição a estes se associa à erosão da microbiota-disbiose intestinal e doenças crónicas?
Um momento na História da Saúde da Humanidade permitiu salvar milhões de vidas. A descoberta da penicilina por Alexander Fleming. Controlo de infeções, cirurgias, quimioterapia, tornaram-se possíveis pela existência de antibióticos, que evoluíram em alguns organismos para combater bactérias inimigas, e das quais beneficiamos no combate a infeções bacterianas. Fleming alertou que a utilização descontrolada iria torná-los obsoletos porque as bactérias se iriam tornar resistentes. Na primeira metade do século XX descobriram-se novas classes de antibióticos, mas rapidamente surgiram resistências e, cada vez menos, novos antibióticos foram descobertos. Milhões de pessoas morrem anualmente com infeções por superbactérias, resistentes a várias classes de antibióticos. Esta é uma das principais ameaças à saúde global e podemos entrar numa era pós-antibiótico, em que deixaremos de poder contar com estes. O uso desregulado na pecuária, para maximizar a produção animal, terá sido uma das principais causas da sua disseminação no ambiente. As bactérias reagiram como sempre fizeram: com resistências. Só recentemente, o uso indiscriminado de antibióticos em animais foi proibido na União Europeia. Os antibióticos também acabam por chegar à nossa alimentação, e ter impacto no microbioma. Evidências acumuladas apontam para que haja relação direta entre exposição prolongada e algumas doenças crónicas, somando disbiose intestinal potenciada por estilos de vida modernos, associados ao stresse e sedentarismo, à desregulação imunitária, e ao envelhecimento da população. Foi dado um salto quântico na esperança média de vida com a descoberta dos antibióticos. Não conseguimos prever a queda a que poderemos assistir se este problema continuar a crescer. Uma das linhas de investigação que persegue prende-se com a prevalência de micobactérias na água de rede, e os efeitos da exposição prolongada. Essa linha de investigação leva-nos à neurotoxina BMAA. Julgo que seria interessante percebermos de que forma esta neurotoxina entra na nossa alimentação e como fazemos a sua associação à Doença de Parkinson.
Há mais de 50 anos, foi identificada nos nativos da Ilha de Guam uma doença neurológica com sintomas mistos de Parkinson, esclerose lateral amiotrófica e Alzheimer. Os cientistas observaram que os Chamorro incluíam sementes de Cicas [plantas semelhantes a palmeiras] na alimentação. As raízes tinham associadas cianobactérias que produziam uma substância (BMAA, neurotoxina) que acumulava nas sementes, mas cujos níveis não explicavam os sintomas neurológicos. Na ilha, existiam morcegos que também se alimentavam das sementes das Cicas, e eram uma iguaria para os Chamorros. Os níveis de BMAA nos morcegos eram muito superiores aos das sementes, e foram considerados a fonte dos sintomas neurológicos e de ALS-PDC. Muitas cianobactérias, abundantes nos oceanos, produzem BMAA que acumula na cadeia alimentar marinha. Em crustáceos, bivalves, peixes pequenos e predadores como tubarões, onde a concentração pode ser milhares de vezes superior à das cianobactérias. Em concreto, como empreenderam a vossa investigação?
Ao testar os efeitos da ingestão crónica desta toxina alimentar em ratinhos, observámos alterações de movimento como as que são observadas em doentes de Parkinson. A ingestão de BMAA afetou significativamente o microbioma numa região do intestino, o íleo. Ancoradas às células epiteliais do íleo vivem bactérias filamentosas segmentadas (SFB) essenciais à modulação imunitária, para proteção do hospedeiro contra invasão por agentes patogénicos. As SFB traduzem a informação de alguns nutrientes (vitamina A) em diferenciação de células imunitárias, e a sua erosão levou a desregulação imunitária, inflamação da mucosa, permeabilização da barreira intestinal, e agregação de uma proteína específica, que é típica na Doença de Parkinson. A BMAA também atacou mitocôndrias, levando à morte de neurónios produtores de dopamina no cérebro, tal como observado na Doença de Parkinson. O impacto de BMAA em SFB e em mitocôndrias [descendentes de proteobactérias] pode indicar que a toxina evoluiu como antibiótico. Na vertente aplicada, o estudo revelou que uma toxina microbiana potencialmente presente na alimentação, pode afetar o microbioma intestinal e mitocôndrias, dando origem a sintomas da Doença de Parkinson. Regressamos ao paradigma que liga exposição prolongada a antibióticos à prevalência de doenças crónicas. Se a BMAA atua como antibiótico e ataca membros essenciais do microbioma e mitocôndrias de neurónios, a sua bioacumulação em alguns alimentos acarreta riscos potenciais para a saúde.
Um dos pontos salientados no vosso estudo “indica que a Doença de Parkinson pode, em alguns casos, ter surgido no intestino muitos anos antes”. Partindo desse conhecimento, é possível agir preventivamente, retardando os sintomas associados à doença ou mesmo evitá-los?
Não tenho resposta definitiva à questão. Colegas neurocientistas demonstraram que a doença pode ter múltiplas causas, genéticas ou ambientais. E que a doença pode ter origem no cérebro ou no intestino. Aparentemente, a alimentação e o estilo de vida serão, por enquanto, fatores que podem modular ou reduzir a suscetibilidade a esta patologia progressiva, quando associada a disbiose intestinal. Quanto a promessas bacterioterapêuticas para restabelecer a diversidade e equilíbrio da microbiota intestinal, devo dizer, em nota pessoal, que o microbioma é uma componente individual, e não é ainda certo que haja cocktails de probióticos com efeitos preventivos ou terapêuticos “universais”. Há muita investigação nesta área e vários ensaios clínicos – precisamos de mais tempo.
O vosso estudo foi conduzido com a utilização de ratinhos. A partir daí conseguem extrapolar para o microbioma humano? Diferentes espécies de SFB colonizam diversos animais, invertebrados e vertebrados. Em humanos, as SFB são relativamente abundantes no íleo nos primeiros anos de vida, e desaparecem com a idade, aparentemente substituídas nas suas funções por outras bactérias, como certas bifidobactérias. O microbioma humano contém diferentes níveis de SFB em diferentes fases da vida, e o microbioma do ratinho e do ser humano, bem como a biogeografia dos intestinos diferem ligeiramente. Facto é que, sem estudos controlados em modelos animais, não teríamos obtido pistas fundamentais sem as quais não teria sido possível avançar no sentido em que estamos. Para além de outras funções na ciência, os modelos animais são essenciais para compreensão de muitos mecanismos fundamentais de doença.
O BMAA e outras toxinas microbianas estão a ser monitorizadas pelas autoridades de Saúde Pública?
BMAA não, mas várias outras toxinas microbianas são monitorizadas, por exemplo algumas de fungos e de bactérias, e certos metais pesados como mercúrio, neurotoxina que também bioacumula em animais aquáticos.
“O direito dos doentes ao tratamento é indiscutível, ainda que tóxico. É urgente mais investimento em estratégias antimicrobianas, porque muitas superbactérias já estão aqui.”