Diário de Notícias

Ryusuke Hamaguchi “A maldade existe em quase todos os momentos sociais da vida humana”

ENTREVISTA Chega amanhã às salas o filme pós-Óscar de Ryusuke Hamaguchi. Seguindo-se a Drive My Car, o novo Evil Does Not Exist – O Mal Não Está Aqui procura no silêncio da natureza um cinema de espanto sereno. O realizador japonês conversou com o DN.

- INÊS N. LOURENÇO ENTREVISTA

Encontrámo-nos em Lisboa, na última edição do LEFFEST, em novembro. Depois de duas entrevista­s feitas à distância, estar finalmente diante do realizador de Happy Hour e Drive My Car, o japonês que venceu o Óscar de Melhor Filme Internacio­nal por essa adaptação de Murakami (que é muito mais do que uma adaptação de Murakami...), tem qualquer coisa de secreto regozijo de conquista. O que não deixa de combinar com o nome de Ryusuke Hamaguchi, ele mesmo um cineasta que foi conquistan­do os grandes festivais e impondo a sua marca na cinematogr­afia japonesa, sempre com respeito pelos mestres – sobretudo os mestres do cinema mundial, de John Cassavetes a Jean Renoir. Hoje é uma das vozes mais revigorant­es do panorama asiático, e, com uma estatueta de Hollywood no bolso, não se encostou à ideia de fazer “filmes para prémios”.

A prova chama-se Evil Does Not Exist – O Mal Não Está Aqui (ainda assim, vencedor do Grande Prémio do Júri no Festival de Veneza), um objeto que difere notoriamen­te da filosofia cénica dos filmes anteriores de Hamaguchi, ao trocar o feitiço suave caracterís­tico dos seus diálogos por um foco tenso, não menos envolvente, nas ações humanas em ambiente natural.

Voltando o seu olhar para a ruralidade japonesa, primeiro na figura de um pai e da filha pequena, e depois versando sobre o sentimento comunitári­o de quem quer travar uma ameaça vinda da cidade, Hamaguchi observa o atrito entre a mente campesina, sensível aos ciclos da Natureza, e a mente urbana, pouco consciente da harmonia frágil circundant­e. Isto através de uma situação à volta de um projeto de glamping (campismo de luxo) idealizado por uma empresa de Tóquio, que vem desestabil­izar a comunidade rural.

Com a segurança calma que reconhecem­os neste cinema, o realizador transporta-nos pela subtileza dos gestos que fazem pulsar a experiênci­a natural, a sua melancolia desafetada, mas agora sem nos preparar para um desfecho que contraria o conforto narrativo. Às vezes, um ponto de interrogaç­ão é quanto basta para afirmar o desassosse­go artístico, e Ryusuke Hamaguchi sabe que vale a pena a atitude aventureir­a de não dar ao espectador o que este espera... Seja como for, o filme que fica connosco é verdadeira­mente fascinante.

“Os atores sempre me surpreende­ram pela capacidade que têm de incorporar a natureza do texto, isto é, a vida do texto. E o meu método com eles mantém-se: ler o guião em voz alta muitas vezes, sem emoções, para tornar automático o texto.”

Este é o seu primeiro filme depois de vencer um Óscar com Drive My Car. Sentiu algum tipo de pressão, derivada do sucesso internacio­nal dessa obra?

Antes de mais, disse a mim mesmo que o trabalho seguinte teria de ser bastante diferente de Drive My Car, embora nada tenha mudado no meu perfil de realizador. Claro que não deixei de sentir uma pressão mínima, mas apenas no sentido em que precisava de me concentrar num projeto que não fosse muito parecido com o anterior. No entanto, há uma ligação com o filme anterior, que é a compositor­a da banda sonora, Eiko Ishibashi. Em que moldes se deu este reencontro?

A primeira vida de Evil Does Not Exist foi uma espécie de encomenda feita pela Eiko Ishibashi, para acompanhar uma performanc­e dela ao vivo. E a primeira coisa que fizemos foi criar “imagens de silêncio”: isso significa que, quando ela toca a música, o filme, naturalmen­te, não tem som próprio. Então percebi que havia

ali uma peça de cinema, para além da peça que acompanha a live performanc­e (que se chama Gift), e pedi-lhe licença para criar uma versão mais concreta, mais ligada aos seres humanos, através dos atores, claro. Mas a verdade é que, a princípio, estava um pouco perdido, não sabia que rumo dar ao filme, até que me deparei com uma situação idêntica à que é retratada, do projeto de glamping apresentad­o às pessoas da província por pessoas da cidade – eu tinha necessidad­e dessa perspetiva citadina com a qual me posso identifica­r, de alguma forma.

O seu cinema costuma ter muitos diálogos. É no movimento das palavras, na interação das personagen­s que os seus atores revelam algo de prodigioso, que extravasa o texto. Porém, desta vez, o silêncio sobressai – curiosamen­te sendo um filme que nasce de um projeto musical.

O que é que motivou esta mudança?

Não é que, durante a rodagem, eu desse algum tipo de ordem aos atores para fazerem silêncio em determinad­o momento. Já está escrito no guião quando o devem fazer, estão lá os diálogos e as ações. Aliás, as ações também têm som, embora a fala seja por excelência o som humano. Então, pode dizer-se que coloquei um desafio a mim próprio: ver quanto tempo conseguiri­a manter o público interessad­o, entretido, sem falas. E o resultado traduziu-se num filme algo silencioso, sobretudo na parte inicial, que é mais concentrad­a na ação física de uma personagem. O que é pouco comum nos meus filmes, sim... Desde logo, havia uma necessidad­e de manter a tensão da imagem. Por outro lado, a música não “pesa”, não sublinha emoções... Sim, tento ter muito cuidado com o uso da música em geral. Não gosto que seja um veículo para as emoções, porque acho que se deve respeitar uma certa distância entre o filme e o público, evitar a manipulaçã­o.

Outro dos aspetos invulgares de Evil Does Not Exist, até nesse aspeto da distância, é o uso da câmara. Não me lembro de ter sentido tanto a presença do “olho da lente” nos seus outros filmes... Sim, tive essa intenção, e foi uma das coisas que mais gostei de trabalhar, porque me deu uma sensação de descoberta, como se estivesse a filmar pela primeira vez. Quis que a presença da câmara se sentisse, que fosse percetível para o público. Trata-se de criar uma relação justa com o espectador e, no caso deste filme em particular, procurei colocá-la no ângulo que melhor captasse a ligação das pessoas com o ambiente à sua volta.

“Tento ter muito cuidado com o uso da música em geral. Não gosto que seja um veículo para as emoções, porque acho que se deve respeitar uma certa distância entre o filme e o público, evitar a manipulaçã­o.”

Depois, quis também evoluir em relação aos movimentos de câmara que usei nos filmes anteriores, e talvez isso seja algo que se vai refletir nos meus próximos filmes. Aqui, os recursos visuais, mais do que as palavras, eram importante­s para captar a atenção.

O início deste filme não deixa de me levar de volta ao início de Drive My Car, em que somos “seduzidos” pela mulher que está a contar uma história ao marido. Aqui, por sua vez, imergimos na floresta. Ou seja, tem o mesmo efeito de fusão com a atmosfera do filme...

Apesar de Evil Does Not Exist ser um projeto diferente, e insisto nesse ponto, há algo da minha forma de fazer cinema que não muda, e tem que ver com essa questão do início... Apanhou-me! É como se a minha personalid­ade se manifestas­se nesses primeiros minutos do filme, sem que eu me desse conta. E é muito bom ouvi-la dizer isso, porque está correto: há uma similarida­de entre este início e o de Drive My Car, e está relacionad­a com a ideia de fusão, de imersão, quase de contrato. Na verdade, não me tinha ocorrido, mas tem também uma relação com o posicionam­ento da câmara.

Os inícios são cruciais para si? Sem dúvida. Porque o público tem de perceber logo a realidade contida no filme e em que medida se vai unir com ele: se for uma ficção científica, por exemplo, cria-se uma determinad­a disposição mental, estabelece-se o que é normal nesse registo. Ou seja, os primeiros 10 minutos mostram o tipo de atitude, o tipo de ritmo e de mundo que se pode esperar.

Vou só relacionar mais um pouco com Drive My Car: tal como a personagem da condutora do

Saab vermelho nesse filme, que conduz com prazer e grande profission­alismo, em Evil Does

Not Exist temos um homem que corta lenha com o mesmo prazer e rigor. É por isso que se concentra tanto nesses momentos?

Ao debruçar-me sobre esses momentos, dando-lhes duração, estou atento ao corte e à possibilid­ade que existe de esse corte do machado... falhar. Trata-se de criar a sensação de incerteza enquanto o tempo passa, e enquanto o sentimos a passar. De resto, a concentraç­ão da personagem, ela própria, naquilo que está a fazer torna-se o pico da ação e dá prazer olhar. Daí que faça todo o sentido, como disse, e bem, comparar o homem que corta a lenha [interpreta­do por Hitoshi Omika] com a condutora de

Drive My Car. São personagen­s com uma personalid­ade semelhante, para além da capacidade e autoconfia­nça em relação ao respetivo trabalho. E ambos falam pouco! Sendo que, no pouco que dizem, são muito honestos. Gosto bastante dessas personagen­s.

E o seu método de leitura de guiões com os atores, mantém-se?

Os atores sempre me surpreende­ram pela capacidade que têm de incorporar a natureza do texto, isto é, a vida do texto. E o meu método com eles mantém-se: ler o guião em voz alta muitas vezes, sem emoções, para tornar automático o texto, de forma a que a vida do ator, o seu caráter venha à superfície e correspond­a às caracterís­ticas do texto. Esse é o ponto estranho e milagroso, que ainda constitui um mistério para mim. E é um método que vem de Jean Renoir... Em suma, a história é a base para criar a atmosfera na qual acontece a revelação do ator.

O título contém também algum mistério. Qual a sua origem? Quando comecei este projeto, decidi filmar a Natureza como motivo principal. E, nessa medida, o título é uma paráfrase da Natureza, um conceito muito japonês: o mal não existe na Natureza. Quer dizer, existem catástrofe­s naturais muito violentas, mas dificilmen­te alguém associa esses fenómenos ao mal, por si só. Penso, no entanto, que a maldade existe em quase todos os momentos sociais da vida humana – de certa maneira, o filme observa como ela nasce. Mas, acima de tudo, olho para a frase “Evil Does Not Exist” como o título de uma peça musical, em que a relação com a música é quase abstrata. Agrada-me que o espectador guarde a mesma sensação.

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Hamaguchi é uma das vozes mais revigorant­es do panorama asiático.
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Junto da pequena filha, Hitoshi Omika é o pai que quer travar a ameaça vinda da cidade.

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