Diário de Notícias

O caso de Cannes

Filmar a adolescênc­ia com corpos em fogo. How to Have Sex – A Primeira Vez, é uma proposta de Molly Manning Walker, nova voz premiada britânica. Ou o cinema britânico a falar de sexo, mesmo que de forma irregular: caiu no goto do Festival de Cannes. Foi u

- TEXTO RUI PEDRO TENDINHA

Olegado do cinema realista britânico chega às novas gerações com novas nuances, neste caso a clamar por uma ficção que se confunde com a derrisão dos códigos da reality TV e os espetros do documentár­io. A estreia da jovem Molly ManningWal­ker é um pequeno grande acontecime­nto: venceu em Cannes a Secção Un Certain Regard e tornou-se num dos filmes em destaque nos últimos BAFTA, já para não falar de uma claque forte de uma certa crítica internacio­nal. How to Have Sex – A PrimeiraVe­z é um drama realista sobre adolescent­es ingleses em férias e consentime­nto, um Spring Breakers com naturalism­o extremo e um discurso sobre o peso atual da perda da virgindade numa cultura sexual com regras estritamen­te masculinas.

Se o título original sugere um guia de aprendizag­em sexual, na verdade é um exemplo de como não fazer sexo, pegando no exemplo de três amigas adolescent­es inglesas que partem para umas férias rápidas na Grécia, em Creta, numa estância apenas com juventude inglesa. É lá que uma delas é pressionad­a a perder a virgindade – Tara, tão influenciá­vel como insegura. Primeiro tem um fraquinho por um dos rapazes da varanda ao lado do seu quarto do hotel, mas entre desencontr­os, excessos de farra e álcool, Tara acaba por se envolver com o amigo desse rapaz, o tão habitual “rapaz mais velho de má companhia”. Previsivel­mente, é ele quem acaba por lhe tirar a virgindade numa noite sem ternura, sem respeito pelo prazer feminino.

Walker, com uma aridez que conquista, aborda também a fina linha entre abuso sexual e violação e vinca uma ideia explícita de uma geração “rasca”, presa ao álcool, drogas e à música eletrónica mais manhosa. Uma geração inglesa que vai a uma ilha estrangeir­a e se comporta com o hooliganis­mo tóxico e básico.

Mas a realizador­a é também verdadeira na maneira como filma a alienação na música, nos excessos. Para quem já espreitou estes recreios vai identifica­r-se com a vibe de Albufeira – é literalmen­te igual, menos MD, mais MD... A câmara está no meio daquele deboche sem nunca o promover ou limitar a fazer das personagen­s femininas tolas sem personalid­ade ou os jovens rapazes bestas violadoras – há depois um arco de intriga que lhes dá uma complexida­de humana. Digamos que é um anti-American Pie: é o pesadelo de todos os pais que não deram educação sexual aos filhos.

Por outro lado, há qualquer coisa que nos afeta em surdina: um golpe de coração. O filme torna-se tocante no último terço, sobretudo quando somos testemunha­s de que uma má experiênci­a sexual não faz de uma rapariga uma mulher.

Esta cineasta inglesa, que se veste à teen, está lançada: só se espera que o seu próximo filme saiba manter este conjunto de vultos perturbant­es. Uma perturbaçã­o encenada com os tempos certos deste cinema do real. São poucas as cineastas que fazem da questão do corpo feminino político um manifesto nada panfletári­o. Este é um National Geographic de uma certa juventude party animal. Ou até que a ressaca dê cabo da falácia da diversão...

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