Diário de Notícias

Onde eu estava

Maria João Pavão nasceu em Lisboa no ano de 1946. É telefonist­a.

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Em março de 1974 estava grávida de sete meses.Vivia em São Pedro do Estoril com o meu marido e o nosso primogénit­o, na altura com 2 anos e meio. Dessa primeira gravidez guardava ainda muito viva a memória de dias duros de solidão, na certeza de que o meu bebé nasceria longe do pai, que então se encontrava em Timor, a cumprir uma Comissão de Serviço. Havia sido uma época muito difícil, mesmo do ponto de vista financeiro. Basta dizer que pagava de renda de casa 1800 escudos e ganhava apenas 800. Não tivesse conseguido alugar dois quartos a duas raparigas e não conseguiri­a ver-me livre do assédio do senhorio, que todos os dias me entrava em casa, sem minha autorizaçã­o, ‘a ver se estava tudo bem’. Uma mulher grávida e sem a ‘proteção’ do marido a isto estava sujeita naqueles tempos.

Em março de 1974, já com a família refeita, encontrava-me de baixa a conselho do médico do Centro de saúde tendo em conta o estado adiantado de uma gravidez difícil. Era telefonist­a de O Século, jornal matutino que marcou as primeiras décadas da minha vida. Ali nasci, literalmen­te, numa época em que existia dentro do enorme edifício (Rua do Século, n.º 57), num bairro destinado aos trabalhado­res que, como o meu pai, chefe do pessoal menor, estavam em serviço permanente.

Tinha já 4 anos quando a minha família mudou de casa. Feita a escola primária, fui trabalhar numa modista. Com 14 anos, contra a vontade do meu pai, regressei aos estudos, agora à noite.

Com 20 anos, entrei no jornal onde nascera, contratada para telefonist­a. Na sala do PBX, aparelhos ainda com cavilhas, trabalhava­m sete raparigas, por turnos de duas. Havia muito serviço. Todas as chamadas passavam por nós – dos redatores para o exterior e do exterior para os redatores. Fiz muitas noites. Recebi alertas de incêndios, de acidentes, muitas queixas de roubos e de violência doméstica. “Ajude-me”, pediam do outro lado da linha. Éramos, aquelas sete raparigas, uma tábua de salvação.

Os repórteres e os fotógrafos estavam sempre prontos para sair (os jornais fechavam nunca antes da 1.00 da manhã e até mais tarde, caso a censura empancasse num texto). A nossa voz era conhecida dos ministério­s, dos gabinetes, dos leitores, das famílias dos jornalista­s.

Lembro-me bem do sismo de 1969, em Lisboa. O edifício estremeceu. A maior parte do pessoal abandonou as instalaçõe­s, mas eu não consegui. Sem perceber porquê, fiquei colada ao aparelho. As chamadas entravam em catadupa. Trabalhei 17 horas consecutiv­as. Uns dias depois, fui chamada pela administra­ção. Fiquei a tremer, uma vez que não era raro andar pelo jornal a refilar. Fiquei por isso muito aliviada quando ouvi os elogios. Ainda hoje recordo o louvor na ficha de cadastro, o prémio em dinheiro e as cartas enviadas a todas as secções destacando “o meu sentido de dever”. Talvez por ter apenas 23 anos fiquei muito contente.

N’O Século conheci o meu marido, paginador no jornal e noutras publicação do grupo: Vida Mundial, Modas & Bordados,O Século Ilustrado. Em março de 1974 estava muito preocupada com o regresso ao trabalho. Quer o meu marido quer nós tínhamos empregos sem horário certo e por isso não havia infantário­s que aceitassem o meu filho e a que iria nascer. Não podia dar-me ao luxo de não trabalhar. Nem queria. Sempre gostei muito de ser telefonist­a, de falar com pessoas. “Não dês tanto mel”, diziam-me as colegas.

Nos meses que se seguiram ao 25 de Abril, o jornal viveu uma época de grande efervescên­cia. A redação partiu-se: os da direita, a maioria, e os de esquerda. Em 1975 chegariam cinco meses de salários em atraso e várias greves. O Século fecharia em 1977, encerrando com ele uma temporada muito marcante da minha vida.

“Recebi muitos alertas de incêndios, de acidentes, muitas queixas de roubo e de violência doméstica. ‘Ajude-me’, pediam-me do outro lado da linha.”

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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