O fim da dissidência (II)
Se na semana passada contei que enquanto aprendia a andar, Thatcher e Reagan começaram o seu legado – espalhando-o por todo o mundo. Quando tive noção das minhas primeiras orientações cardinais, já estava na rua.
O grau de contestação aumenta durante toda a década de 90, o que não é alheio à subida da esquerda ao poder. A velha máxima de que a esquerda seca a rua extingue-se nesse período. A nova esquerda, da dita terceira via, primeiro com Clinton e mais tarde com Blair, manteve e ampliou as políticas económicas anteriores, não resolvendo a degradação das condições de vida e frustrando reivindicações.
Não por acaso, foi já com Clinton no poder que a NAFTA entrou em vigor a 1 de Janeiro de 1994. No mesmo dia, a partir da Selva de Lancadona, um grupo de indígenas agremiados em volta do Exército Zapatista de Libertação Nacional traria a público a sua luta, declarando guerra ao México. A luta contra o neo-liberalismo ganharia nova forma.
Apesar de feita a pensar nos lucros e especulações possíveis a partir da livre circulação de mercadorias, informação e fluxos financeiros; este novo patamar da globalização também permitiu facilidade de circulação de pessoas da Europa e América do Norte. Cada encontro das governações transnacionais para a aceleração do capitalismo e desigualdades, era confrontado com oposição aos milhares nas ruas, muitas vezes capazes de fazer suspender cimeiras.
São reconhecidos como pontos altos desse movimento – que comummente se designou por anti-globalização –, as resistências ao encontro da Organização Mundial do Comércio em Seattle (1999), à Cimeira do FMI e Banco Mundial em Praga (2000) e ao encontro do G8 em Génova (2001).
A extinção desse movimento global deveu-se, a meu ver, às consequências de dois momentos consecutivos: a repressão após o G8 em Génova e ao 11 de Setembro de 2001.
Nas ruas de Génova, a polícia assassinou um manifestante: Carlo Giuliani, mas não se ficou por aí. As fronteiras foram fechadas e centenas de manifestantes foram detidos, torturados e mais tarde condenados a prisão efectiva.
O 11 de Setembro, por todo o espectáculo e mudança de paradigma global, causou uma anemia total a que se associou um conjunto de leis anti-terroristas que foram habilmente usadas para desmantelar a arquitectura dos movimentos sociais onde eles eram fortes.
Foram precisos 10 anos para que se formasse novamente uma rua global no hemisfério norte. Surgiu em consequência da crise do imobiliário de 2008 e das medidas de austeridade dos anos posteriores. A permanência contínua no espaço público passou a forma de luta. Foi assim em 2011 no Rossio, em Madrid (15M) e em Nova Iorque (Occupy).
No caso do Estado espanhol, o movimento de 15 de Março teve consequências na reformulação da esquerda apresentada a eleições. Em Portugal nem por isso. Criou um lastro de novos espaços sociais, alguns já extintos e outros actualmente em perigo, mas não mexeu na estrutura partidária, a não ser em algum recrutamento e, mais tarde, numa união dos partidos pré-existentes à esquerda para anular algumas das medidas da austeridade.
A esquerda portuguesa tem tido dificuldades em lidar com a espontaneidade e com o quotidiano de todos. Ao invés de se envolver e se instalar junto dos demais, parece que a rua e as gentes patrocinam alguma ameaça a quem a encabeça.
Esse comportamento é visível na relação que mantém, por exemplo, com o movimento climático ou com a diversidade recorrendo a um certo tokenismo. Essa atitude é expressão da sua elite e perante as críticas correm a denominar-se aliados. Há coisas que a esquerda não pode fazer de bandeira para si própria, a interseccionalidade deve ser incorporada.
Nemtãopoucodevecorrerorisco desefecharemsimesmo,criandofórunsquesãomaisdomesmo,sem nenhumanovidadeintegrativae abrangente.Fórunsqueapenasservemparapromoverosinterlocutores desempreacomentadoresdapraça ouempregadosdeinstituições.
Já não há extremo na esquerda, nem tão pouco a dissidência necessária para mudar as vidas.
Deus é radicalmente questionado quando se é confrontado com a realidade brutal dos holocaustos da História e concretamente com a tortura e a morte dos inocentes.
Neste domínio, é sempre incontornável a passagem célebre de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, em que Ivan Karamázov refere precisamente a crueldade exercida sobre as criança inocentes. “A ciência toda não vale as lágrimas das crianças”, proclama. O que faremos com o sofrimento dos inocentes? Como se pode alguma vez justificar o injustificável? É tal a revolta de Ivan Karamázov que ele devolve respeitosamente a Deus o bilhete de entrada na harmonia final da História do Mundo.
Em última análise, é o sofrimento e a morte que nos obrigam a pensar. Mas precisamente o sofrimento e a morte são o que a razão nunca entenderá, concretamente quando se trata do sofrimento e da morte das vítimas inocentes. É por isso que Miguel de Unamuno escreveu: “O mais santo de um templo é que é o lugar onde se vai chorar em comum.” E acrescentava de modo dramático: “Um Miserere cantado em comum por uma multidão, açoitada pelo destino, vale tanto como uma filosofia.”
O paradoxo é este: face ao calvário do mundo, Deus comparece perante o tribunal da razão. Por outro lado, para haver salvação, também e sobretudo para as vítimas inocentes, ela só pode vir de Deus. Deus tem de justificar-se, e, ao mesmo tempo, só ele pode justificar, isto é, salvar.
Sexta-Feira Santa é o dia da celebração da Cruz de Cristo, o justo inocente, vítima do poder religioso e político. Na sua obra A figura histórica de Jesus, E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, que quer dar uma visão convincente do conjunto da vida do Jesus real, portanto, apenas a partir da História, independentemente da fé, conclui que é possível saber o que é que Jesus fez, que o centro do seu anúncio foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o Templo, que compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas também sabemos que, “depois da sua morte, os seus seguidores experienciaram o que descreveram como a ‘ressurreição’”: aquele que tinha morrido apareceu como “pessoa viva, mas transformada”. “Acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso.” Deste modo, criaram um movimento, que cresceu e se estendeu e mudou a história: o cristianismo.
No período pascal, os cristãos ouvem falar muitas vezes da Sexta-Feira Santa, o mesmo acontecendo com o Domingo de Páscoa. Mas raramente ou talvez nunca se fale do Sábado Santo. É em Sábado Santo, no entanto, que nos encontramos.
Na medida em que é possível reconstituir o que se passou historicamente com Jesus, foi assim: Pouco antes do ano 30 da nossa era, Jesus, que vivera uma vida normal em Nazaré, acorreu também ele ao baptismo de João. Foi aí que ouviu o apelo divino para o anúncio do Reino de Deus. “Mudai de mentalidade, convertei-vos, acreditai no Evangelho.” Agora, quando irromper o Reino de Deus, Deus mesmo vai reinar sobre o seu povo. Deus vai transformar radicalmente a História, levando à consumação plena e final a sua obra da criação. Acabarão os sofrimentos, as doenças, a morte. Nenhum homem há-de explorar outro homem. Reinará a justiça, a paz, o amor, cumprir-se-ão as promessas, ficarão satisfeitas todas as esperanças.
Como sinal dessa chegada, Jesus curou doentes, comeu com pecadores, transgrediu normas também de tipo religioso que,