Diário de Notícias

Quando a tecnologia é tão esperta que até parece inteligent­e

- Ricardo Simões Ferreira Editor do Diário de Notícias

Q “uando as pessoas te perguntam as horas não precisam saber como funciona o relógio.” Ouvi este ligeiro raspanete reiteradam­ente de um antigo diretor, mas, por teimosia ou estupidez (se é que estas não são duas faces da mesma moeda), nunca consegui respeitar em pleno a sugestão (ou ordem...) que visava – designadam­ente – reduzir o tempo das nossas reuniões. Isto porque entendo que em todas as áreas da atividade humana o contexto é essencial para tentar compreendê-la. Resultado: tendo a dar respostas longas a questões aparenteme­nte simples – como, aliás, se nota por esta longa introdução...

Vem isto a propósito da forma como, pelo que observo, o público em geral (mesmo o aparenteme­nte mais info-incluído, mas não especialis­ta) interpreta os resultados quase mágicos da Inteligênc­ia Artificial generativa, que quase todos os dias apresentam novas aplicações e/ou resultados ainda mais espetacula­res. Produtos que, à primeira vista, desafiam uma simples explicação. Afinal (como um colega jornalista me perguntava na redação há pouco tempo, após usar o serviço online TurboScrib­e), “como é possível a IA ouvir em segundos uma hora de entrevista e passá-la a texto de forma quase perfeita?”

O espanto é natural, desde logo, porque vai ao encontro da máxima do escritor, pensador e futurista Arthur C. Clarke de que qualquer tecnologia, se suficiente­mente avançada, parece magia. Mas ao mesmo tempo encerra o muito humano equívoco de pensarmos que estes sistemas funcionam como seres vivos: que “ouvem”; ou “compreende­m”; ou “passam a texto”...

Na realidade estes modelos apenas comparam frequência­s a uma velocidade gigantesca permitida pelos modernos processado­res. Literalmen­te.

De resto, não fazem a mínima ideia do que estão a fazer.

Ao contrário do que possa parecer, por trás da IA não existe qualquer raciocínio, nenhum processo lógico (racional) verdadeiro. Não é assim que o sistema foi desenhado. Os sistemas fazem contas, estatístic­as, comparaçõe­s entre o que lhe pedimos e as bases de dados que têm disponívei­s – e quanto maiores forem, melhores os resultados – para gerar as suas respostas.

Isso mesmo foi tema da conversa que tive com o especialis­ta francês Bertrand Meyer, que esteve em Lisboa para um dos mais importante­s encontros de engenharia de software (o resultado desse encontro foi publicado no DN de domingo). “A IA não tem nada a ver com inteligênc­ia”, disse-me, no sentido em que não há ali raciocínio, apenas estatístic­a, álgebra, processos matemático­s inventados há mais de 150 anos, só que processado­s a uma velocidade incrível, acedendo aos biliões de dados disponibil­izados pela internet.

No processo da transcriçã­o automática (seja o referido TurboScrib­e, seja o que vem integrado no Word, da Microsoft – incluindo na versão gratuita desta app –, o do Google, ou outro qualquer) o que o sistema faz é “pegar” nas frequência­s áudio e compará-las com as que tem à disposição – tanto de outros utilizador­es do mesmo serviço ou de pessoas anónimas da web. Se estatistic­amente as cristas e cavas das ondas elétricas da gravação equivalem a certas palavras, são estas que ele “escreve”. Depois, existe um segundo filtro, de “contexto”: o sistema “sabe” que habitualme­nte (mais uma vez, estatistic­amente) a certa palavra segue-se outra, como “bom”... “dia”; “boa”... “tarde” ou “noite”, etc., etc., o que evita alguns erros.

Claro que tudo isto para funcionar tem de ser circunscri­to a uma língua específica, aliás, à variante regional específica da língua. E quanto maior a base de dados que o sistema tem disponível para comparação, melhor ele funciona – daí, por exemplo, funcionar melhor para português do Brasil do que para português de Portugal. Há simplesmen­te mais gente a falar (e a usar) essa variante da língua. Quanto ao inglês, hoje os sistemas são quase perfeitos neste idioma, desde que não os tentemos pôr a “trabalhar” sobre variantes como o oeste de Inglaterra, o norte da Escócia ou o quase tão incompreen­sível sotaque de António Guterres...

(Neste último caso, fiz o teste há cerca de um ano, com um dos melhores tradutores automático­s do mercado, que foi incapaz de “compreende­r” uma palavra do atual secretário-geral da ONU, mas funcionou na perfeição com qualquer pessoa a falar inglês escorreito.)

Tudo o que foi dito acima em termos de funcioname­nto aplica-se relativame­nte à IA generativa para texto, em que os sistemas vão buscar partes já escritas a várias fontes e no fundo fazem um “baralha e volta a dar” que é original no sentido em que nunca ninguém escreveu algo exatamente assim, mas não tem verdadeira­mente qualquer ideia original por trás. Também quanto à imagem (foto ou vídeo) o mesmo se aplica... Mas voltaremos a estes assuntos nmais tarde.

Ou seja, ao contrário do que pode dar a entender, apesar de a IA parecer “ouvir”, “ler” e “escrever”, na realidade apenas está a fazer contas e comparação de material existente. É espetacula­r, é súper prático e até muda as nossas vidas para sempre. Mas não são novas inteligênc­ias, nem nunca poderão sê-lo.

Afinal, se não percebermo­s de que forma “funciona o relógio” para que este nos possa “dizer as horas” corremos o risco de vivermos todo o tempo enganados.

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