Diário de Notícias

Carolina 23 anos. É mestre em Direito. Quer ser magistrada. Vive em Alcobaça.

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Havia sempre nos livros da escola a referência à Revolução dos Cravos. A cada ano, mal recebia os manuais, ia de imediato à procura dessas páginas. Sabia que as professora­s, nem que fosse uma vez por ano, haveriam de falar no assunto e que eu, mais uma vez, ficaria em silêncio. Nunca disse na escola que foi a minha avó que deu o nome à revolução. Apesar de todo o orgulho que tenho. Acredito mesmo que aquele gesto foi obra do destino.

A minha avó Celeste é filha de uma espanhola de Badajoz e de pai desconheci­do. Com dois irmãos, mais velhos, cresceu na Casa Pia. À minha bisavó custou-lhe até muito deixar ali os filhos, que visitava regularmen­te. Nunca os abandonou.

A minha avó era a menina favorita da diretora do colégio. Fez o Curso de Enfermagem, mas como tinha problemas pulmonares não pôde exercer. Porém, a menina Celeste foi sempre independen­te. Nunca se casou com o meu avô. Quando o meu avô se portou mal, tinha a minha mãe 3 anos, separaram-se. Para consolar a minha avó, quis oferecer-lhe um fio de ouro e mais coisas. Mas a minha avó não quis saber dos presentes, nem dele. Sozinha, continuou a cuidar da filha e da mãe.

Em abril de 1974, trabalhava num restaurant­e. O restaurant­e fazia um ano no dia 25 de abril. Os cravos eram para dar aos clientes. Com o restaurant­e fechado, as empregadas ficaram com as flores.

Dá-se então o feliz episódio, no início da Rua do Carmo. Um fotógrafo (Carlos Gil) assistiu à cena. Publicou a fotografia. No dia seguinte a minha avó foi trabalhar. Já os colegas tinham ligado para a Crónica Feminina, que logo a foi entrevista­r.

Este ano, esse episódio será reconstitu­ído. A minha avó gostava muito que uma placa assinalass­e o local. Algo a dizer que foi ali que nasceu o nome Revolução dos Cravos. Ou até ter ali uma pequena estátua.

Falar do 25 de Abril emociona-a muito. Nestes períodos, fica melancólic­a. Acreditamo­s que o AVC que sofreu pouco depois das comemoraçõ­es dos 25 anos de Abril terá tido a ver com as emoções que sentiu. No entanto, tem sido muito ignorada por todos.

Não há fotografia­s da minha avó com 40 anos. No incêndio do Chiado, perdeu a casa e todos os pertences. As fotografia­s arderam. Foram-se todas as recordaçõe­s.Vive há anos num prédio a cair aos bocados, perto da Avenida da Liberdade. Podia viver com a filha e a neta em Alcobaça. Mas à minha avó, alfacinha de gema, ninguém a consegue tirar de Lisboa.

A minha avó, que continua a prestar muita atenção às notícias, está muito preocupada com o país. Na noite das últimas eleições, ao contrário do que é hábito, foi deitar-se cedo. “Não estou para ver esta miséria.” A mim ensinou-me desde miúda que o valor mais importante é o da liberdade. Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

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