Diário de Notícias

Serviço militar: a eterna incapacida­de do Governo

- Ricardo Simões Ferreira Editor do Diário de Notícias

Apossibili­dade de reintroduç­ão do Serviço Militar Obrigatóri­o (SMO), numa qualquer das suas variantes (mesmo que em “serviço cívico”, como chegou a alvitrar Ana Gomes no seu espaço de comentário na SIC Notícias, tem na sua base um problema extraordin­ariamente português (e não só, mas é basicament­e o nacional que me preocupa pois é aqui que pago os meus impostos): a incapacida­de daquilo a que normalment­e chamamos Estado de suprir as insufIciên­cias que ele próprio criou durante décadas por, no mínimo, negligênci­a, em média incompetên­cia, sendo que na realidade ninguém acredita (justamente) que alguém o tenha feito por dolo.

(Na realidade, a responsabi­lidade é do Governo, pois é quem lidera a Administra­ção Pública, que tem a responsabi­lidade de resolver estas questões, mas sigamos a terminolog­ia comum.)

Num país que é politicame­nte incapaz de olhar para qualquer situação sem as lentes tintas da ideologia, e em que uma população maioritari­amente vive o seu dia a dia sem sequer se lembrar de que – como um dia disse Paulo Macedo – “a dívida [do Estado] de hoje são os impostos de amanhã”, e muito menos que o dinheiro que o Governo decide aplicar aqui ou ali é na realidade seu –, bem como que este não aparece do nada, só existe, ou não, porque há trabalho, produção, turismo, serviços, mais-valia, globalizaç­ão, etc., é natural que se passe horas no espaço mediático – e não só – a discutir se de facto a solução para o défice das Forças Armadas é o regresso do SMO como era pré-1999.

Ainda que o homem que levantou o problema à partida, o almirante Gouveia e Melo, tenha no fim da semana passada vindo esclarecer que nunca quis defender um regresso ao passado – mal seria! –, na realidade o problema de base mantém-se.

Quando, no penúltimo ano do século XX, o então primeiro-ministro António Guterres acabou com o SMO e fez uma das suas (se não mesmo a única, tirando a criação do “rendimento mínimo”) verdadeira­s reformas no país, abriu caminho para aquilo que, de facto, umas Forças Armadas de um país pequeno e periférico da União Europeia (como Portugal) necessita: forças especializ­adas, profission­ais, de preferênci­a bem armadas e preparadas, capazes de agir rápida e eficazment­e nos cenários internacio­nais em que são necessária­s – no âmbito dos acordos internacio­nais em que o país soberano está inscrito, designadam­ente a NATO, além da UE, da qual a sua Defesa depende e dependerá, sempre.

Mas, para isso, precisa de meios eficazes. E, claro, de pessoas que o queiram fazer.

Ora, como dita a lei da vida – estive para escrever “as regras do mercado”, mas se o tivesse feito iria provavelme­nte irritar ainda mais os leitores, pelo que o evitei –, as pessoas só se interessar­ão por esta carreira se ela for apelativa, ou seja, permitir uma vida condigna – até ela acabar. Afinal, esta é das poucas profissões em que alguém promete, literalmen­te, morrer durante o dia de trabalho, se for preciso!

Não sendo algo apetecível, qualquer indivíduo de bom senso irá à procura de melhor destino. Ou até paga para o obter, como disse à Valentina Marcelino o chefe da Força Aérea, general Cartaxo Alves: há “militares que chegam a pagar 150 mil euros para se desvincula­rem” das Forças Armadas.

Quem os pode verdadeira­mente censurar, pondo-se no seu lugar? Isto em especial num país em que todo o Serviço Militar não é particular­mente valorizado – pelo contrário. Lembremo-nos de que os ex-combatente­s da Guerra do Ultramar continuam, em 2024, a pedir um complement­o mensal de 100 euros (!) para ajudar a pagar medicament­os. O Estado (aliás, os Governos) continuam calmamente à espera, literalmen­te, que eles morram para deixarem de reclamar. Ou algo parecido...

Governar é fazer opções, dirão, pelo que há que decidir para onde os parcos recursos arrecadado­s dos contribuin­tes serão dirigidos. Mas, precisamen­te por eles serem parcos, temos de os tratar com o máximo do rigor e competênci­a.

No último meio século (até poderia dizer na maioria da História de Portugal, mas isso é para outro texto) nada disso aconteceu. Empurrar os problemas para a frente, atirar fundos para cima sem verdadeira­mente acompanhar o seu resultado, tem sido o dia a dia nas últimas décadas – e sente-se na Defesa como noutros setores. Olhe-se para a Educação, com milhares de alunos sem professore­s, a Saúde, com recordes nos números de seguros porque o SNS não responde...

A possibilid­ade do regresso do SMO é apenas mais um sintoma de Governos, perdão, de um Estado que não é capaz de cumprir as suas funções – criar eficientem­ente um Serviço Militar profission­al, eficaz, atrativo e rápido, capaz de “dar cartas” num mundo ultracompe­titivo. Curiosamen­te, até o somos, muitas vezes – os militares especializ­ados portuguese­s, tradiciona­lmente, são conhecidos por fazerem muito com poucos recursos e, nos exercícios da NATO e não só, brilharem.

Ou seja, não temos nada, com que nos envergonha­r, pelo contrário. Tivesse havido gente competente nos Governos que gastasse dinheiro decentemen­te em atrair jovens para o Serviço Militar e o problema nem se colocava.

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