Serviço militar: a eterna incapacidade do Governo
Apossibilidade de reintrodução do Serviço Militar Obrigatório (SMO), numa qualquer das suas variantes (mesmo que em “serviço cívico”, como chegou a alvitrar Ana Gomes no seu espaço de comentário na SIC Notícias, tem na sua base um problema extraordinariamente português (e não só, mas é basicamente o nacional que me preocupa pois é aqui que pago os meus impostos): a incapacidade daquilo a que normalmente chamamos Estado de suprir as insufIciências que ele próprio criou durante décadas por, no mínimo, negligência, em média incompetência, sendo que na realidade ninguém acredita (justamente) que alguém o tenha feito por dolo.
(Na realidade, a responsabilidade é do Governo, pois é quem lidera a Administração Pública, que tem a responsabilidade de resolver estas questões, mas sigamos a terminologia comum.)
Num país que é politicamente incapaz de olhar para qualquer situação sem as lentes tintas da ideologia, e em que uma população maioritariamente vive o seu dia a dia sem sequer se lembrar de que – como um dia disse Paulo Macedo – “a dívida [do Estado] de hoje são os impostos de amanhã”, e muito menos que o dinheiro que o Governo decide aplicar aqui ou ali é na realidade seu –, bem como que este não aparece do nada, só existe, ou não, porque há trabalho, produção, turismo, serviços, mais-valia, globalização, etc., é natural que se passe horas no espaço mediático – e não só – a discutir se de facto a solução para o défice das Forças Armadas é o regresso do SMO como era pré-1999.
Ainda que o homem que levantou o problema à partida, o almirante Gouveia e Melo, tenha no fim da semana passada vindo esclarecer que nunca quis defender um regresso ao passado – mal seria! –, na realidade o problema de base mantém-se.
Quando, no penúltimo ano do século XX, o então primeiro-ministro António Guterres acabou com o SMO e fez uma das suas (se não mesmo a única, tirando a criação do “rendimento mínimo”) verdadeiras reformas no país, abriu caminho para aquilo que, de facto, umas Forças Armadas de um país pequeno e periférico da União Europeia (como Portugal) necessita: forças especializadas, profissionais, de preferência bem armadas e preparadas, capazes de agir rápida e eficazmente nos cenários internacionais em que são necessárias – no âmbito dos acordos internacionais em que o país soberano está inscrito, designadamente a NATO, além da UE, da qual a sua Defesa depende e dependerá, sempre.
Mas, para isso, precisa de meios eficazes. E, claro, de pessoas que o queiram fazer.
Ora, como dita a lei da vida – estive para escrever “as regras do mercado”, mas se o tivesse feito iria provavelmente irritar ainda mais os leitores, pelo que o evitei –, as pessoas só se interessarão por esta carreira se ela for apelativa, ou seja, permitir uma vida condigna – até ela acabar. Afinal, esta é das poucas profissões em que alguém promete, literalmente, morrer durante o dia de trabalho, se for preciso!
Não sendo algo apetecível, qualquer indivíduo de bom senso irá à procura de melhor destino. Ou até paga para o obter, como disse à Valentina Marcelino o chefe da Força Aérea, general Cartaxo Alves: há “militares que chegam a pagar 150 mil euros para se desvincularem” das Forças Armadas.
Quem os pode verdadeiramente censurar, pondo-se no seu lugar? Isto em especial num país em que todo o Serviço Militar não é particularmente valorizado – pelo contrário. Lembremo-nos de que os ex-combatentes da Guerra do Ultramar continuam, em 2024, a pedir um complemento mensal de 100 euros (!) para ajudar a pagar medicamentos. O Estado (aliás, os Governos) continuam calmamente à espera, literalmente, que eles morram para deixarem de reclamar. Ou algo parecido...
Governar é fazer opções, dirão, pelo que há que decidir para onde os parcos recursos arrecadados dos contribuintes serão dirigidos. Mas, precisamente por eles serem parcos, temos de os tratar com o máximo do rigor e competência.
No último meio século (até poderia dizer na maioria da História de Portugal, mas isso é para outro texto) nada disso aconteceu. Empurrar os problemas para a frente, atirar fundos para cima sem verdadeiramente acompanhar o seu resultado, tem sido o dia a dia nas últimas décadas – e sente-se na Defesa como noutros setores. Olhe-se para a Educação, com milhares de alunos sem professores, a Saúde, com recordes nos números de seguros porque o SNS não responde...
A possibilidade do regresso do SMO é apenas mais um sintoma de Governos, perdão, de um Estado que não é capaz de cumprir as suas funções – criar eficientemente um Serviço Militar profissional, eficaz, atrativo e rápido, capaz de “dar cartas” num mundo ultracompetitivo. Curiosamente, até o somos, muitas vezes – os militares especializados portugueses, tradicionalmente, são conhecidos por fazerem muito com poucos recursos e, nos exercícios da NATO e não só, brilharem.
Ou seja, não temos nada, com que nos envergonhar, pelo contrário. Tivesse havido gente competente nos Governos que gastasse dinheiro decentemente em atrair jovens para o Serviço Militar e o problema nem se colocava.