A razão de ser deste feroz racismo social é a de manter um estatuto de privilégio ao longo de décadas e, se possível, de séculos, para os seus membros.”
Alguns de nós nascem em Famílias Antigas, tão antigas que descendem de Adão e Eva. Outros de Famílias Recentes às quais corresponde, em regra, dinheiro vivo recente: são os “novos-ricos”. Mas poucos nascem na Linha e descendem do grupo exclusivo que frequentava, com D. Amélia, a Praia da Rainha. As Famílias da Linha têm códigos estritos de comportamento que permitem aos seus membros reconhecer-se entre si: dizem “encarnado” em vez de “vermelho”, “sófa” em vez de “sofá”, “coeelho” em vez de “coelho”. Um beijo e não dois quando se cumprimentam, … e uma infinidade de regras bem mais complexas do que os códigos de reconhecimento da Opus Dei ou da Maçonaria. A morte civil (e a consequente passagem a “bimbo” do Norte, Centro ou Sul) pode ocorrer quando menos se espera: “Usa meias brancas e está a jantar na nossa casa… Como me pude enganar, pensa o lívido anfitrião, nunca mais o recebo.”
A razão de ser deste feroz racismo social é a de manter um estatuto de privilégio ao longo de décadas e, se possível, de séculos, para os seus membros. Os ministros, administradores de bancos e magistrados em tribunais superiores, devem pertencer a “famílias como as nossas”. Nada de Orientais (há que decidir depressa, no interesse dos nossos familiares e amigos, sem pensar nas consequências para o interesse público), nada de Rurais (mesmo se nascidos em zonas piscatórias, para um citadino de gema as batatas e as sardinhas são igualmente produzidas em fábricas na Reboleira), nada de bimbos, em geral.
Fazemos de conta que contam, porque necessitamos do seu voto para seremos eleitos nesta democracia de castas. Mas, uma vez eleitos, devem permanecer no seu lugar e não incomodar quem pertence às famílias sempre representadas entre os que assinaram as sucessivas Constituições desde 1822… São elas quem mais ordena e a música serve para distrair o Povo, enquanto se entretém nessas atividades popularuchas que são as manifestações.
Deste modo está tramado quem não nasceu na Linha ou, descendendo de quem nela não nasceu (grande parte dos seus atuais residentes) não sabe imitar na perfeição os códigos nela reinantes. Não estamos numa meritocracia e nem sempre há intenção de alterar o statu quo. Continuamos, por exemplo e por vezes, a assistir ao contratar e promover de familiares e amigos das direções de faculdades, em várias universidades (mesmo nas que não se situam na Linha), mesmo recorrendo a um currículo científico parcialmente comum (marido e mulher assinam conjuntamente parte significativa dos artigos que o compõem) e à atribuição de louvores por intervenções em reuniões de órgãos colegiais em que o louvado é amigo e quase nelas não participou. Ninguém reage, porque na nossa sociedade de castas se tornou extremamente difícil dizer “não”.
Cinquenta Anos passados sobre o 25 de Abril a frase do Zeca Afonso “eles comem tudo, eles comem tudo … e não deixam nada” continua em parte atual. É tempo de concretizarmos a imposição constitucional de que ninguém pode ser discriminado em razão da sua ascendência para que, passados mais de 100 anos, a República finalmente se cumpra. É tempo de remetermos para a Linha quem não representa a generalidade da população e deixa-los a aguardar qual será a cor, o fenótipo dos seus descendentes, se, não pertencendo aos “puros” da Linha, não tiverem um “Livro de Família” que controle efetivamente a pureza da linhagem (da sua raça e etnia) nas últimas quatro gerações. Ainda lhes sai como neto “um negrinho da sorte” semelhante ao que se vende na Feira de São Mateus, emViseu… Sempre serve para jardineiro, é tão difícil conseguir um bom, nestes tempos em que vivemos.