Diário de Notícias

Caravaggio: o artista e a carne

Revisitaçã­o do mito de um dos mestres da grande arte italiana, o drama biográfico A Sombra de Caravaggio, de Michele Placido, põe a vida agitada do pintor a falar da natureza dos seus quadros. Estreia-se esta quinta-feira.

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

A “s pessoas tendem a pensar que a história é imutável, que existe algo chamado realidade. A realidade é o que me interessa – aquela imagem da realidade em Caravaggio. Porque é que um filme de Ken Loach é mais real do que um filme de Ken Russell? E por que é que o neorrealis­mo italiano é mais real do que o cinema de Michael Powell? Para mim, a resposta é que não são.” Diante de um novo filme sobre Caravaggio, estas palavras de Derek Jarman prestam-se a ser citadas. Palavras do realizador da mais considerad­a obra de cinema sobre o pintor italiano, que tem por título, simplesmen­te, Caravaggio (1986). E porquê esta questão do realismo (que atravessa a arte)? Porque se aplica ao espírito de A Sombra de Caravaggio, de Michele Placido, também ela uma abordagem pouco respeitosa em relação aos preciosism­os históricos, que celebra o ângulo de quem realiza. Entenda-se: se Jarman quis extrair da biografia e da pintura do artista a sua dimensão queer e blasfema, Placido, embora em tom menor, está do mesmo lado do retrato livre, do mito e da imaginação suportados pelos estudos disponívei­s. A realidade é o que o realizador quiser.

Enfim, não trouxe à lembrança o filme de Jarman para comparar ou “fazer sombra” à L’Ombra di Caravaggio, antes para refletir o diálogo entre a modernidad­e do cinema e o pintor barroco que talvez mais influência teve, e continua a ter, no trabalho dos diretores de fotografia. Não é por acaso que se fala da luz de Caravaggio a propósito de tudo e mais alguma coisa, seja o chamado grande cinema (Apocalypse Now e a cena da cabeça nua de Marlon Brando desenhada pela sombra, alguns filmes de Albert Serra, etc.), seja qualquer filme que evidencie a técnica do chiaroscur­o como forma de produzir uma impressão pictórica, isto é, uma evocação deliberada da pintura.

E não é por não estar ao nível do grande cinema que esta obra de Michele Placido deixa de ensaiar essa aproximaçã­o visual – fá-lo, aliás, sem exagerar no efeito tentador dos quadros vivos, remetendo-se ao lugar da honestidad­e ficcional. A Placido interessou, claramente, o homem carnal, que dá pelo nome de Michelange­lo Merisi (Caravaggio era o nome artístico), cujas manifestaç­ões de desejo, a vida junto dos marginaliz­ados e, sobretudo, a procura pela violência inerente aos corpos, ofereceram à arte a consciênci­a de que qualquer representa­ção do sagrado só pode vir do humano, na sua condição menos privilegia­da.

Neste contexto, Riccardo Scamarcio é uma escolha mais do que justa para assumir a pele de Caravaggio, um ator que responde à chamada do vigor físico, da intensidad­e da presença, do tumulto interior e do caos da carne, reproduzin­do o “quadro” de uma existência vagamente documentad­a que suscita um imaginário buliçoso.

O filme de Placido joga com isso, centrando-se precisamen­te nos moldes de uma vida que não se coaduna com os termos da Igreja (fosse qual fosse a época; mas estamos na Itália de 1610), surgindo aqui a figura de um investigad­or dos serviços secretos do Vaticano, Ombra/ “Sombra” (Louis Garrel), que vai sondando o percurso licencioso do pintor acusado de homicídio, a fim de sustentar a decisão a favor ou contra uma sentença de morte.

Caravaggio sou eu

É curioso notar que, tanto no Caravaggio de Derek Jarman como neste A Sombra de Caravaggio, os respetivos realizador­es dão um ar da sua graça em personagen­s de cardeais (no caso de Jarman é apenas um cameo, enquanto Placido interpreta o Cardeal Del Monte), e talvez isso possa ser entendido como um modo de se inscrevere­m no universo moral do pintor.

De resto, foi o próprio Scamarcio quem disse, há umas semanas, na antestreia de A Sombra de Caravaggio na Festa do Cinema Italiano, que Michele Placido seria alguém um pouco à imagem deste artista de gestos desordenad­os e expressivo­s (o público português conhece melhor a versão de Placido como Comissário Corrado Cattani, na série O Polvo, da década de 80...).

Na sua interessan­te ausência de brio, que nunca se confunde com insipidez, A Sombra de Caravaggio funciona como uma mistura de telefilme e retrato de artista/biopic de arte. Uma mistura que acaba por vingar ligeiramen­te, dada a recusa de artifícios de grandeza: é um filme tão imperfeito como desenrasca­do, quase a imitar a brusquidão do pintor à procura de uma luz humana na escuridão dos becos.

Na sua interessan­te ausência de brio, que nunca se confunde com insipidez, A Sombra de Caravaggio funciona como uma mistura de telefilme e retrato de artista/biopic de arte.

Foi com emoção que lembrei a memória de Sebastião da Gama no dia exato em que se completava­m 100 anos do seu nascimento, no Salão Nobre do Município de Setúbal, casa acolhedora e bem conhecida. E veio-me à memória Maria Aliete Galhoz, que considerav­a “irresistív­el, a emoção com que fala dele quem o conheceu”, num impulso para testemunha­r “sobre uma personalid­ade sem dúvida humanament­e singular, preciosa, se o termo ainda pode ser exato e bom”.

Mas foi a Ruy Belo, arguto analista da obra poética do autor de Pelo Sonho É Que Vamos que fui buscar inspiração. E se ele não o conheceu pessoalmen­te, o certo é que esteve quase livre desse “fascínio vivo”. Se não houve encontro pessoal, a verdade é que a empatia se evidenciou pela leitura da poesia e pela procura da aura que o tempo projetou para além da existência física.

“Atravessei o Tejo num ferry-boat – diz-nos o poeta de Homem de Palavra(s) – por uma tarde de sol. Depois de Setúbal a caminho do Outão, já eram os passos de Sebastião da Gama que me guiavam. Como se conhecesse­m a paisagem de há muito. Nem sempre eram grandes coisas que me faziam vibrar. Quase sem querer, ia reconstitu­indo um quadro esteva por esteva, onda por onda, aroma por aroma. Foi um acaso que me levou a descobrir a pousada, propriedad­e dos pais do poeta. Eu, cá por mim, nunca a teria procurado. A beleza da vida está em deixá-la acontecer. O sr. Gama – assim lhe chamavam a meu lado – apressou-se a vir ao meu encontro. Naquela altura eu não passava de um cliente. Não foi preciso muito para que nos entendêsse­mos. Acabou por me servir… poesia. Já havia um por-do-sol lá fora, sobre um mar tão aberto como eu nunca tinha visto, quando reparei naquela senhora de luto – o poeta teria morrido coisa de uns dois anos antes – que a um canto da esplanada via… Não sei bem o que via. Reparei nos seus olhos profundos à força de olhar a vida. Depois… encontrámo-nos a falar dele. Com alegria, claro está. É impossível falar de outra maneira de Sebastião da Gama”…

Eis o encontro, feito de espírito, entre dois poetas, na magia do Portinho da Arrábida. E assim entre Ruy Belo e Sebastião da Gama estabelece-se uma relação capaz de superar a distância do tempo e de preservar o afeto direto da proximidad­e, sem necessidad­e do fascínio imediato de quem pela palavra pôde compreende­r o prazer da alegria e da graça. A poesia atrai os poetas e, por isso ouvimos José Régio a dizer genuinamen­te: “Quando pude conhecer pessoalmen­te Sebastião da Gama pensei encantado: ‘Louvado seja Deus! Ora aqui está um Poeta! Um novo Poeta’.”

Para Maria Aliete, como para Ruy Belo, o poeta de Pelo Sonho É Que Vamos, atinge um estado de deslumbram­ento quando se exprime pela afirmação dos sentimento­s, tendo presente o real, não como abstração, mas como existe, utilizando a palavra “direta, leal, digna”. O sublime realiza-se na enumeração de referência­s palpáveis, que começando por ser poéticas, ganham dimensão transcende­nte – graça, aparição, presença e sinal.

O poeta da Arrábida foi um cultor de amizades e o círculo dos seus amigos, permitiu a melhor compreensã­o da obra, que ganha força pela entrega, pela dádiva, que sempre caracteriz­ou a sua existência. Lembramo-nos de David Mourão-Ferreira, Luís Filipe Lindley Cintra, Maria de Jesus Barroso, Matilde Rosa Araújo, Maria de Lourdes Belchior, Luís Amaro ou Helena Cidade Moura…

Franciscan­amente filho da Serra da Arrábida, discípulo confesso de Frei Agostinho da Cruz, o poeta amou apaixonada­mente a vida, a irmã natureza e a estranha irmã morte. Como escreveu: “Pelo sonho é que vamos, Comovidos e mudos. Chegamos? Não chegamos? / Haja ou não frutos, / Pelo Sonho é que vamos.”

E “se é o sonho que nos guia (diz ainda Ruy Belo), a realidade nunca será pobre, porque não passará de um pretexto para ir mais longe”. Acompanhou-nos a lembrança de Joana Luísa, sempre presente. E ao deambular em Vila Nogueira de Azeitão foi como se António Osório também ali estivesse.

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Riccardo Scamarcio confere corpo e alma a Michelange­lo Merisi, mais conhecido como Caravaggio.
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