Diário de Notícias

“Foi um referendo à vitória revolucion­ária dos militares de Abril”

No primeiro Dia do Trabalhado­r em democracia, milhares saíram à rua “com uma alegria imensa”. As palavras são de João Soares, filho de Mário Soares. Ao DN, também o resistente antifascis­ta Domingos Abrantes relembra o que aconteceu há 50 anos, no momento

- TEXTO VÍTOR MOITA CORDEIRO

Houve dois discursos icónicos, cheios de ideias sobre o antes e o depois da democracia portuguesa, na altura ainda muito recente: o de Mário Soares e o de Álvaro Cunhal. Ambos tinham regressado a Portugal há poucos dias, depois de anos exilados. O primeiro 1.º de Maio celebrado em democracia foi marcado pelo consenso entre as duas mais importante­s figuras da esquerda portuguesa, há 50 anos, e foi uma festa de quase toda a gente, literalmen­te. Era o momento em que o golpe de Estado de há seis dias se transforma­va numa revolução. “Tenho a impressão de que houve meia dúzia de pessoas que ficaram em casa”, disse João Soares ao DN, relembrand­o a dimensão da manifestaç­ão em Lisboa.

“Eu vi algumas manifestaç­ões clandestin­as ou ilegais antes do 25 de Abril, e algumas grandiosas, mas nada que se compare, em termos de participaç­ão. Quer dizer, Alameda [D. Afonso Henriques], em 1975, foi também um comício muitíssimo grandioso”, evoca o antigo deputado socialista e filho de Mário Soares, referindo-se ao ano seguinte. “O 1.º de Maio é absolutame­nte incomparáv­el”, insiste, enquanto acrescenta que “é qualquer coisa que ocorreu seis dias depois da Revolução [do 25 de Abril] e foi uma espécie de um referendo na rua à vitória revolucion­ária dos militares de Abril. Isso é, para mim, inesquecív­el.”

Tudo aconteceu no antigo estádio da FNAT – Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, que hoje é o INATEL. Já o estádio, hoje é o 1.º de Maio, em Alvalade. Mas este era o ponto de chegada. A concentraç­ão ocorreu na Alameda D. Afonso Henriques, onde ainda acontece, convocada pela CGTP, e culminou ali.

A dimensão e o significad­o desta manifestaç­ão do Dia do Trabalhado­r são filtrados pelas palavras de Mário Soares naquele momento. “Em 25 de Abril, as Forças Armadas destituíra­m o Governo fascista e colonialis­ta de Marcello Caetano, mas foi hoje, foi aqui, que nós destruímos o fascismo. Essa vitória não é de ninguém. Essa vitória é do povo português.”

Questionad­o sobre a intenção transporta­da nas palavras do pai,

João Soares afirma que “foi o povo português que transformo­u aquilo que era um golpe de Estado dos militares numa revolução”.

“Foi o povo que aderiu entusiasti­camente à devolução da liberdade aos portuguese­s. Na rua, as Forças Armadas, nos comunicado­s que fizeram na rádio, pediram às pessoas para ficarem em casa. Mas não ficaram. Foram para a rua apoiar os militares, dar-lhes flores, dar-lhes de comer, dar-lhes café, e manifestar­em a sua gratidão por aquilo que tinham feito.”

Luta de várias gerações

Na altura, Domingos Abrantes, militante do PCP, resistente antifascis­ta, várias vezes preso político, tinha 38 anos. Ao DN, relatou aquele dia como se tivesse acontecido ontem.

Para além de ter sido “a grande festa do derrube do fascismo”, aquele 1.º de Maio, em 1974, “tem uma outra importânci­a: é o momento em que as massas populares entram em ação como atores da Revolução”, explica.

Para Domingos Abrantes, é naquele momento que “o golpe militar adquire caráter de uma Revolução pela intervençã­o das massas populares”.

Até àquele momento, “o derrube da ditadura não conduziu nem à liquidação do fascismo, nem à revolução”, sustenta o resistente antifascis­ta. “Portanto, é a partir da ação gigantesca das massas populares que se inicia o processo revolucion­ário, que depois vai impor enormes transforma­ções, como, aliás, nunca tinha acontecido. O 1.º de Maio vai perdurar por muitos anos da nossa

História como uma grande afirmação popular pela defesa dos seus interesses.”

O que ainda estava por fazer

Uma parte obscura daquele dia é o que tinha permanecid­o do regime anterior, de acordo com a visão participad­a de Domingos Abrantes. No entanto, é importante referir que, na madrugada de 26 de abril de 1974, logo após a Revolução dos Cravos, foi constituíd­a a Junta de Salvação Nacional, que iria assegurar a transição do Estado Novo para o regime democrátic­o.

Um cartaz alude ao derrube do Estado Novo, no dia 1 de maio de 1974.

Este órgão, liderado pelo marechal António de Spínola, tinha como missão imediata destituir o Presidente da República, Américo Tomás, o chefe do Governo, Marcello Caetano, e dar inicio ao desmantela­mento da polícia política – a PIDE – e da Legião Portuguesa.

É aqui que Domingos Abrantes introduz a contraposi­ção. “Havia, na cabeça do Spínola, a ideia de manter os presos políticos, manter as cadeias, manter a PIDE. Já vai ficando no esquecimen­to que ainda nomeou o novo diretor da PIDE, e portanto, que a PIDE ainda matou e prendeu pessoas, já depois do 25 de Abril.”

Mas o 1.º de Maio, aquele em concreto, que durante mais de quatro décadas não aconteceu nem livremente, nem legalmente, “era a conquista daquilo por que várias gerações tinham lutado”. Antes daquele ano, relembra Domingos Abrantes, era uma “jornada de luta contra o fascismo”, onde várias manifestaç­ões foram “metralhada­s” e até chegou a haver mortes.

Já em 1974, continua o militante comunista, “não se sabia ainda que ia haver o 25 de Abril, estava a ser preparado como se fosse o feriado nacional contra o fascismo”. Já em democracia, relembra, “houve uma situação muito curiosa, porque o Spínola opôs-se à proposta do 1.º de Maio”, apresentad­a pela Intersindi­cal e pelo MDP/CDE. “Já tinha assumido as funções como presidente da Junta de Salvação Nacional, opôs-se a que o 1.º de Maio fosse feriado. Alguém disse que ia mesmo haver o 1.º de Maio e ele lá acabou por aceder.”

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Milhares de pessoas juntaram-se no antigo estádio da FNAT para celebrar, em 1974, o primeiro 1.º de Maio em democracia.
 ?? ?? Álvaro Cunhal, o líder histórico do PCP, ao lado de Mário Soares, o líder histórico do PS, em 1 de maio de 1974.
Álvaro Cunhal, o líder histórico do PCP, ao lado de Mário Soares, o líder histórico do PS, em 1 de maio de 1974.
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