Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Eduardo Catroga “A fatia de leão dos apoios devia ir para as empresas”
O economista diz que os fundos europeus e a política do BCE trazem uma “oportunidade de ouro a Portugal”. Desde que haja “condições de atratividade aos investimentos empresariais”.
Eduardo Catroga tem uma longa carreira política e empresarial. Foi ministro das Finanças no último governo de Cavaco Silva, teve papel central na negociação do memorando da troika e está no conselho geral e de supervisão da EDP, a que já presidiu. Por estes dias lança um novo livro: Desenvolver Portugal – reflexões em tempo de pandemia, no qual apresenta uma visão para Portugal no mundo, num cenário de desglobalização e reindustrialização.
No pós-pandemia vamos ter um processo de desglobalização?
Desglobalização enquanto abrandamento da globalização – que se produziu sempre por ondas. Em consequência da guerra comercial EUA vs. China, vamos assistir a um período de relativo declínio deste fenómeno global. Mas do fenómeno global em termos de fluxos físicos de comércio e investimento, porque nos digitais – desenvolvimento de tecnologias de informação, digitalização, internet – o mundo é cada vez mais global. Eu diria que será um decréscimo da intensidade de fluxos de comércio à espera de novo impulso à globalização.
A globalização é positiva?
A globalização e a intensificação dos fluxos comerciais e de investimento dão, sobretudo às pequenas economias, oportunidades de crescer, porque o mercado para as pequenas empresas deixa de ser o seu pequeno mercado doméstico para ser o global. É um fenómeno com ganhadores e perdedores. Mas Portugal só cresceu verdadeiramente quando se abriu, na década de 1960 – entrámos na EFTA, começámos a exportar e, na década seguinte, a atrair investimento estrangeiro. O investimento estrangeiro teve um papel importantíssimo na economia reprodutiva do país, industrialização e desenvolvimento. A globalização é positiva para quem dela sabe tirar partido, desenvolvendo estratégias vencedoras.
Essa desglobalização que aborda no livro pode ser um impulso à reindustrialização do país?
Esse fenómeno está a acontecer a nível europeu, porque a Europa deixou criar alguma dependência estratégica ao nível de certas produções e os detratores apontam essa situação para defender o movimento de recuperar para a Europa negócios que tinham saído para mercados emergentes. A queda do emprego industrial está mais ligada à transformação e progresso tecnológico do que à globalização. Mas como há de agentes políticos e opinião pública a perceção de que importa trazer para a Europa algumas indústrias – o que vai ao encontro das tendências sobretudo dos grandes países. Mas isso é positivo e vai trazer oportunidades.
Oportunidades para Portugal?
As oportunidades para Portugal existem se conseguirmos criar condições de atratividade aos investimentos empresariais. Atrair empresas que têm de pensar no mínimo no mercado europeu, por questões de escala. Estaremos em concorrência com os países europeus, da OCDE, compete-nos criar condições de atratividade para estas empresas que tragam valor acrescentado nacional, exportações, progresso tecnológico e emprego qualificado.
Quais são as maiores dificuldades a essas oportunidades?
As organizações internacionais que analisam a competitividade relativa do país apontam-nos pontos fortes como o clima, a segurança, o sistema de comunicações. Mas também fracos: burocracia excessiva, morosidade de decisões dos tribunais administrativos e fiscais, falhas na concorrência e na regulação de mercados, rigidez na organização do trabalho. E dizem que a nossa competitividade relativa fiscal é fraca. Se queremos atrair investimento com potencial de crescimento, tecnológico e exportador, temos de criar condições. Precisamos de IDE, o capital português é insuficiente.
O Orçamento do Estado (OE) dá atenção suficiente às empresas?
Um OE pode contribuir para a taxa
“Bruxelas já concluiu que a EDP não foi favorecida. Acredito que, mesmo que demore mais, em Portugal se chegue à conclusão que a UE tinha razão.”
“Não sou partidário da introdução
[na governação] de elementos anti-europeus, anti-euro e anti-empresas.”
de crescimento se não aumentar despesas públicas fixas e aumentar as de qualidade, em fatores críticos que têm que ver por exemplo com educação, formação tecnológica. O eixo prioritário tem que ver com capital humano, as pessoas e o conjunto das suas capacidades e competências gerais e especializadas. Nós precisamos de aumentar essas competências especializadas. Ora, o OE é cada vez mais um instrumento de negociação política entre os partidos e um documento mais conjuntural do que estrutural. Estrutural seria se avançasse um conjunto de reformas que atuassem nos pontos fracos estruturais: redução drástica da burocracia utilizando digitalização ativa, reestruturando processos, robotização administrativa, Inteligência Artificial, reestruturando funções e estruturas. E o OE não se preocupa com isso...
Os apoios, sobretudo para setores mais afetados, são suficientes?
Do que precisamos é de um plano que combine ações estruturais, reformas que atuem cirurgicamente nos pontos fracos estruturais. Precisamos de um sistema de incentivos a estratégias empresariais competitivas e de aumentar o investimento público usando os fundos europeus e selecionando projetos.
O plano de recuperação europeia chega para revitalizar a economia portuguesa?
Nós tivemos três quadros de apoio desde 1993, depois o QREN, depois o PT2020. E agora temos uma oportunidade de ouro, se soubermos aplicar os recursos. Não basta investir, há que fazê-lo com qualidade. Se não criarmos condições para a reprodutividade dos investimentos, para melhorar a qualidade do aparelho do Estado, a qualidade do investimento e os incentivos às empresas, o sistema fica imperfeito. Temos de atuar fazendo escolhas para o objetivo principal: melhorar a produtividade e a competitividade.
Há risco para a banca? Devíamos tirar lições da última crise?
Esta crise económica não se transformou numa crise financeira ou de liquidez graças à bazuca do BCE, de que se fala pouco mas que é determinante. O BCE está a permitir que os países aumentem os défices públicos, está a monetizar os défices – que não aconteceu em 2011-2014. Por isso temos condições únicas: a bazuca do BCE, a bazuca dos fundos europeus com três componentes: o quadro financeiro plurianual 2021-2027, o plano de recuperação e resiliência europeu e um saldo muito importante do PT2020 por aplicar. Se virmos, de 1986 a 2018 recebemos 136 mil milhões da Europa, a preços de 2011, e tendo o PIB crescido apenas 120 mil milhões. Agora vamos receber, em vez de cerca de 4 mil milhões/ano, o dobro durante dez anos. Desta vez tem de ser diferente. Nas outras, o tecido produtivo foi o parente pobre na aplicação destes fundos. As empresas são a célula-base da atividade económica, fonte de rendimento das famílias e do próprio Estado. O tecido produtivo devia agora ter a fatia de leão dos apoios, o que implica um sistema adequado de avaliação, análise, seleção e hierarquização.
As empresas queixam-se de não terem sido tidas em conta o suficiente no plano...
O governo apresentou um plano preliminar, que pode ser revisto.
E deve ser revisto?
Com certeza que sim. Recentrando as prioridades da aplicação de envelopes financeiros em tudo quanto tem que ver com melhoria da competitividade e produtividade.
Mudando de tema, o PSD fez bem em fazer um acordo com o Chega nos Açores?
Eu considero que não há boa economia sem soluções governativas estáveis e coerentes. Repare, nós tivemos aqueles fundos para fazer a convergência real e se virmos concluímos que progredimos imenso de 1986 a 1995: tínhamos 55,6% do nível de vida médio europeu (PIB per capita em poder de compra); chegámos a 1995 com 68,3% e a 2000 com 71%. Agora estamos com 72%. É uma quase estagnação na convergência. A causa é a estagnação de produtividade – não trabalhar mais, mas melhor.
E o PSD fez bem ou não?
Estou fora da política, sou um cidadão independente que aceitou missões na política e partidário duma convergência estratégica entre todos os partidos que apoiam o modelo europeu: economia de mercado competitiva, socialmente inclusiva. Não sou partidário da introdução de elementos anti-europeus, anti-valores da UE, anti-economia de mercado, anti-euro, anti-empresas.
Então o BE também não faz sentido nesta solução governativa?
É claro que não. Como é que partidos podem influenciar o processo de decisão política, querendo vencer no quadro da economia europotencial peia e global, sendo contra a UE, o euro e as empresas?
E em relação ao Chega?
Ainda não sei o que é o Chega, qual a sua expressão eleitoral, os valores. Tem algumas bandeiras, como os partidos mais à esquerda tinham, mas quando chega determinada altura essas bandeiras não passam disso mesmo. Defendo que quem ganha eleições devia governar. Quem quebrou essa regra consuetudinária da democracia portuguesa foi o PS, em 2015. Eu acho que quem ganha devia governar e o principal partido da oposição por uns tempos devia abster-se de criar oposição e deixar governar. O PS quebrou a regra, legitimamente à luz do quadro constitucional, e o PSD Açores tem toda a legitimidade para chegar a acordo no sentido de também ter uma maioria.
Mesmo com um partido que se diz antissistema?
O partido é antissistema dependendo das decisões que lhe derem. A negociação do programa do governo regional devia ter linhas vermelhas inultrapassáveis.
Passando à EDP, ficou surpreendido com a decisão do Ministério Público (MP) de afastar António Mexia da liderança na investigação das rendas excessivas?
É preciso melhorar a qualidade da mecânica do processo pré-acusatório no MP. É inconcebível aparecer uma queixa numa procuradoria exatamente igual à queixa em Bruxelas a propósito de alegadas rendas excessivas. E Bruxelas já decidiu sobre essa matéria, demonstrou técnica e juridicamente que a EDP não foi favorecida. Estou convencido que mais tarde ou mais cedo o sistema judicial português vai chegar à mesma conclusão da UE.
Está na EDP em representação da China Three Gorges. O mandato termina em abril. Vai continuar?
A questão ainda não se põe. Em tudo na vida há ciclos e eu aceito sempre desafios, que analiso em função de projetos e contextos no momento de tomar a decisão.