Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Jaime Nogueira Pinto “Muito do que não gostavam em Champalima­ud no meio dele era que gostasse de trabalhar”

- —JOANA PETIZ

Exigente, dedicado, de uma “independên­cia invulgar até perante o poder” do Estado Novo, que gostava mais do barulho das máquinas do que do silêncio do banco. O retrato de António Champalima­ud por quem o conheceu.

Lançado no início do mês, António Champalima­ud, Um Olhar faz um retrato da vida de um português notável, homem de negócios que fez, perdeu e reconstrui­u fortuna, que marcou a economia, a sociedade e o país, ao qual deixou em herança 500 milhões de euros para a criação da fundação a que dá o nome. Para esse retrato, que começou por ser uma fotobiogra­fia, Jaime Nogueira Pinto usou as muitas visões de quem o conheceu, mas também a sua imagem de alguém com quem conviveu quase três décadas.

O Jaime conheceu António Champalima­ud no Brasil, onde aliás trabalhou com ele. Havia quem o descrevess­e como um homem duro, exigente com os outros mas também com ele próprio. Foi esse o homem que conheceu?

Sim, trabalhei um ano com ele no Brasil, quando estávamos ambos exilados – já o conhecia, porque havia relações de família, o meu sogro trabalhou toda a vida com ele, mas nesse ano tivemos muitas conversas, passei fins de semana na casa dele, em Vespasiano (hoje Belo Horizonte)... E era um homem de trabalho. Há sempre invejas sobre estas pessoas, mas muito do que não gostavam de

Champalima­ud no meio dele era precisamen­te que ele gostasse de trabalhar.

E almoçasse coxinhas de frango na lanchonete...

Essa história tem graça, conto-a no livro: ele um dia chamou-me e convidou-me para almoçar, mas disse que se calhar eu não ia gostar dos sítios onde ele costumava ir... e quando chegámos era então uma lanchonete onde ele comia de pé – e era conhecidís­simo. A verdade é que ele não dava muita importânci­a ao almoço, era para despachar. Ele gostava de trabalhar e queria conhecer tudo sobre as áreas onde estava, não era um mero utilizador ou rentista. Do cimento à siderurgia ou ao gado, gostava de saber como as coisas funcionava­m, estudava, discutia com os engenheiro­s. Gostava das máquinas e de como funcionava­m.

Mais do que do silêncio do banco.

Sim, ele dizia isso. E depois era uma pessoa muito ligada à natureza, era velejador, desportist­a, caçador... era uma personalid­ade muito complexa e muito completa, mas sobretudo muito fora do baralho. Eu conheci relativame­nte bem muitas pessoas dessa geração – e algumas com muita qualidade, Jorge de Mello, por exemplo –, mas ele tinha uma independên­cia invulgar. Até perante o poder. Não era homem de venerações e acho que isso também lhe trouxe alguns problemas, numa sociedade que era muito atenta, veneranda e obrigada dos poderosos.

Ainda assim, tirou algum benefício dessa estrutura de sociedade.

Mais ou menos... Ele começa nos cimentos, pegando numa empresa falida que o pai deixou. Aos 19 anos, deixa os estudos, começa a trabalhar e depois é beneficiad­o com os Cimentos de Leiria, empresa do tio Sommer, que já era uma fábrica muito avançada tecnologic­amente. E daí parte para a siderurgia, é aí a vantagem que tem. E que é uma história muito interessan­te, porque mete os mecanismos do Ancien Régime. Há um momento em que há uma luta grande dentro do governo entre um grupo que quer levar a siderurgia para Trás-os-Montes – o que, olhando para o mapa, parece ser uma loucura – e outro que, como ele, queria fazê-la no Seixal. E como havia grande discussão, o ministro da Economia disse que ele tinha de falar com Salazar para resolver o assunto. E é assim que a questão se resolve – mas entretanto também Salazar já tinha estudado profundame­nte o assunto e ficou convencido que era essa a melhor solução. Estamos a falar de gente séria no sentido que estudavam a coisa, faziam o trabalho de casa. E ele tinha muito esse lado de respeito, além de uma inteligênc­ia que lhe permitia, a partir de um assunto que desconheci­a, trabalhar os dados essenciais e fazer as perguntas certas. Tinha essa capacidade de grande compreensã­o.

“Champalima­ud não era homem de venerações. Isso trouxe-lhe alguns problemas numa sociedade que era muito atenta, veneranda e obrigada.”

Este livro começa por ser uma fotobiogra­fia... e tem aliás imagens lindas, de momentos da vida privada dele, muitas delas inéditas.

O livro nasce de um pedido de uma grande amiga minha, que era a Luisinha, a filha de António Champalima­ud, para marcar o centenário dele em 2018, mas já havia duas biografias – a do Freire Antunes e a da Isabel Canha e do Filipe S. Fernandes, bastante completas. Então esta começou por ser uma fotobiogra­fia e acabou numa mistura. Há realmente fotos extraordin­árias, até das caçadas em Moçambique – ao contrário da geração dele, que era mais ligada a Angola, ele era um apaixonado por Moçambique, dizia

“Ele tinha uma certa intuição que havia uns castelos de cartas na banca... E daí ter, depois de negociar com três ou quatro grupos portuguese­s, optado por vender aos espanhóis.”

mesmo que era o país mais bonito do mundo.

As fotos vêm da Fundação Champalima­ud?

Sim, do arquivo, que é um acervo muito bom também de documentaç­ão, e da família. Curiosamen­te, quase não há fotografia­s de infância e uma das explicaçõe­s é que no 28 de setembro os militares as levaram, acredito que por causa das molduras, que eram de prata.

Qual foi a maior dificuldad­e que sentiu ao escrever a história de Champalima­ud?

A questão dos bancos. Porque não há dúvida que nesta personagem, que é notável, há aí uma certa contradiçã­o. Ele clama muito – e com razão – contra os abusos e pela desnaciona­lização da banca, e depois vai vender os bancos a Emílio Botín, ao Santander. Mas há uma razão para isso: há um conflito nele entre o interesse público patriótico e o de deixar uma família em paz, porque ele ficou muito traumatiza­do com o que acontecera com a herança Sommer e teve medo que se pudesse repetir na geração a seguir. Então fez um esforço de reduzir as coisas a liquidez e repartir.

A Fundação foi a forma de se redimir da venda dos bancos aos espanhóis?

Ele teve também essa preocupaçã­o de bem público, a Fundação Champalima­ud e outra muito curiosa que é a Fundação de Aljubarrot­a, a que também deixa uma quantia muito substancia­l. Mas acho que foi sobretudo porque ele tinha muito aquele ar do capitalism­o puro e duro mas era na verdade um homem, nos últimos anos, mais sensível. Estas pessoas com qualidade, que fazem coisas, têm sempre depois um lado de brutalidad­e, de energia – ele era um admirador de Alexandre da Macedónia, de Napoleão, e sabia bastante de história militar. E tinha uma certa intuição.

Achou que não havia em Portugal quem fosse capaz de pegar nos bancos?

O Daniel Proença de Carvalho, que o conhecia muito bem, dizia-me que ele tinha uma certa intuição – que viemos infelizmen­te a confirmar – que havia aqui uns castelos de cartas... era a tal graça que se fazia que os portuguese­s tinham inventado nos anos 90 o capitalism­o sem capital. E daí ter recusado, depois de negociar com três ou quatro grupos aqui, ter optado bruscament­e por vender aos espanhóis.

Ainda assim, doou 500 milhões para a Fundação. Descreve-o como não sendo especialme­nte apegado ao dinheiro mas muito mais “um apaixonado pela criação”, como o próprio se dizia.

Foi de facto uma doação muito significat­iva – e em detrimento da família... Mas ele era curiosamen­te desprendid­o, não era um sibarita, não fazia questão de ter muitas coisas. Ele tinha coisas boas, gostava de coisas bonitas – tinha uma coleção de arte extraordin­ária e uma das casas mais bonitas de Lisboa –, mas ao mesmo tempo prescindia disso com facilidade. Esta casa de Vespasiano de que falei era mínima, modestíssi­ma e com vista para a fábrica. Tinha apenas três sinais exteriores de riqueza: uma piscina para ele poder nadar – mas no meio de um descampado, parecia saída de um daqueles filmes de baixo orçamento –, uma sala pequena mas com uma coleção fantástica de grandes obras e um conjunto de malas Vuitton que saía lá de cima de um armário.

Isso ajudou a que tivesse essa capacidade de fazer fortuna depois de perder tudo, de se levantar e recomeçar várias vezes?

Exatamente, os altos e baixos da fortuna. E também porque ele tinha muito aqueles lemas e modelos da cultura clássica – mais romana do que grega, até. O grande elogio que o Plutarco faz a César é dizer-lhe que ele é igual na vitória e na derrota, aquela ideia de homem que não fica eufórico na vitória nem deprimido na derrota. E António Champalima­ud era assim. E claro que também era muito exigente, às vezes até de uma certa brutalidad­e na relação pessoal, porque não tinha grandes contemplaç­ões para esta coisa muito portuguesa e que o Eça agarrou bem dos atentos, venerandos e obrigados. Isso continua a existir muito e ele não tinha nenhuma paciência para isso, não tinha paciência para aduladores. Era mesmo uma carta fora do baralho.

Fazia-nos falta agora alguém como António Champalima­ud?

Talvez fizesse, mas neste contexto não sei que poderia trazer... Uma das consequênc­ias deste regime e da maneira como as coisas foram feitas – ou não foram feitas – é que a economia de Portugal está desnaciona­lizada. No sentido que a banca e uma série de setores-chave estão hoje nas mãos de estrangeir­os.

Os centros de decisão já não estão em Portugal?

Houve uma grande conversa acerca disso, mas depois foi-se vendendo tudo. Temos ainda algumas famílias e grupos que mantiveram certa presença, mas são muito poucos. E a sensação que temos é que, entre as restrições da União Europeia e a descapital­ização que foi acontecend­o e que levou a essas aquisições, o país ficou como se diz naquela famosa frase de Dom João II: “O meu pai deixou-me só rei dos caminhos e das estradas de Portugal”. E agora com esta crise que está a arruinar os pequenos negócios – eu vejo isso, tenho escritório na Baixa e é tristíssim­o ver que alguns vão tentando resistir mas muitos estão a fechar. Eu tenho pena, porque apanhei Portugal numa fase em que tinha outra força – e Champalima­ud era muito um símbolo desse Portugal.

Essa força é o que o distingue dos empresário­s de hoje?

O país também mudou muito, Portugal tinha outra independên­cia. O regime anterior era autoritári­o, não havia partidos nem liberdades políticas, mas nos últimos desses 20 anos o país um cresciment­o e um desenvolvi­mento económico únicos – ainda que viéssemos de uma base muito pobre.

Este é o segundo livro que o Jaime publica neste ano. O primeiro, Contágios - 2500 Anos de Pestes, é um retrato das pandemias na História.

Esse livro foi quase uma forma de expiar o que estava a viver, escrever sobre o que me mantinha confinado; e agora está prestes a sair a décima edição da biografia que fiz de Salazar, com um novo prefácio pelos 50 anos da sua morte...

Estamos muito diferentes do que éramos nesses tempos de outras pandemias?

Não, porque a natureza humana é sempre a mesma. Eu gosto muito de reler os clássicos e ao lermos a descrição da peste de Atenas de Sófocles vemos bem que os medos são os mesmos, os comportame­ntos... Hoje a comunidade científica está divida, como normalment­e está nestas coisas, mas nós olhamo-la e esperamos dela o que os antigos esperavam dos deuses ou de Deus. O assustador é que, historicam­ente, há um longo tempo entre o momento da descoberta da doença e a cura – na sida passaram 15 anos entre os primeiros casos e a descoberta dos antirretro­virais que permitiram torná-la quase numa doença crónica (exceto para África, que infelizmen­te não tem essa sorte e acesso). Mas apesar de tudo, as gerações mais antigas estavam mais habituadas às provações. Se pensarmos na pneumónica, que matou 140 mil pessoas em Portugal, numa população de 6 milhões, e as pessoas seguiram a vida mais ou menos normal... Nós criámos artificial­mente uma ideia de que nunca mais haveria tragédias – depois da Guerra Fria, passando a viver em democracia­s liberais, temos a ciência que é fantástica – e esse otimismo que não conta com o que está sempre lá, a incerteza da sorte que está sempre no teatro grego, isso paga-se caro.

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 ??  ?? António Champalima­ud, Um Olhar
Jaime Nogueira Pinto
Editora Dom Quixote PVP: 34,90 euros
António Champalima­ud, Um Olhar Jaime Nogueira Pinto Editora Dom Quixote PVP: 34,90 euros

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