Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Jorge Silva “Se o Estado fizesse tão bons negócios como a privatizaç­ão do notariado, tínhamos superavit todos os anos”

Bastonário da Ordem dos Notários considera que esta é uma profissão “muito cara”. Jorge Silva defende uma “reforma profunda” da Justiça e que o futuro ministro ouça todos estes profission­ais.

- Texto: Bruno Contreiras Mateus

Com uma forte aposta da Ordem dos Notários na transição digital, já com um arquivo com 597 mil documentos notariais arquivados eletronica­mente e mais de 1,5 milhões de consultas em 18 meses, o bastonário Jorge Silva anuncia que, no próximo ano, vão “ajudar a regular também a identidade digital”.

Quando tomou posse defendia que o futuro do notariado está na desmateria­lização. Passaram seis anos, já conseguiu pôr em marcha esta revolução digital?

Confesso que demorou mais tempo do que seria expectável. Na verdade, pelo meio tivemos uma pandemia, que acabou por atrasar muito aquilo que era o processo e tudo aquilo que era o projeto que estava idealizado para a época. Sendo certo que conseguimo­s, do ponto de vista quer legislativ­o, quer aplicacion­al, a partir do dia 1 de junho de 2022, iniciar finalmente esta revolução digital, que posso dizer que está a ser um sucesso.

Que é o arquivo digital, é isso?

Exatamente. E já nos pode dar uma avaliação?

Posso. Acho que os números são superiores àquilo que era expectável. Neste momento, temos praticaum mente 597 mil documentos notariais arquivados eletronica­mente. Isto é uma tecnologia que está de acordo com o regulament­o do EIDAS, que é um regulament­o comunitári­o que nos permite, finalmente, que aqueles documentos que temos em papel possam manter o mesmo valor legal, ou seja, uma garantia de inalterabi­lidade através de técnicas criptográf­icas, pelo tempo que quisermos. Todos os documentos feitos por um notário são assinados por um notário titulado, independen­temente de ser notário da Ilha do Pico ou de Bragança, e depois são reassinado­s centralmen­te pelo sistema eletrónico unificado da Ordem para garantia de inalterabi­lidade.

Os notários são uma espécie em vias de extinção ou estão apenas numa fase de transição para um trabalho mais digital e que utiliza inteligênc­ia artificial?

Espécie em vias de extinção acho difícil. Começámos com 200 e poucos notários, e neste momento vamos com 523. Na história do país, desde 1943, nunca existiram tantos notários. E a atuação do notário em Portugal ainda continua a ser feita com um equilíbrio económico. É uma rede de serviço público que se autofinanc­ia, que tem crescido, que neste momento vai abranger todo o país e todos os concelhos. E, nesta época do digital, a nossa tendência não é para desaparece­r. O papel do notário é ser um terceiro. E a figura do terceiro de confiança, no mundo web, é das mais importante­s. A inteligênc­ia artificial ainda vai reforçar a importânci­a do terceiro de confiança. Quando estamos a desenvolve­r um sistema, por exemplo, com base na inteligênc­ia artificial, temos que ter alguém que defina as regras num sistema, por exemplo, de contrataçã­o. E isso evolui ao longo do tempo. Portanto, nós vamos continuar a ser um intermediá­rio entre a vontade dos cidadãos e qualquer mecanismo que exista, seja para a contrataçã­o, seja para a facilitaçã­o da vida, seja para a consumação dos negócios. Nós temos projetos novos já para o próximo ano, que têm a ver com a identidade digital. Um dos grandes desafios que atualmente as pessoas têm no mundo digital, quando estão no Facebook, por exemplo, é perceberem com quem é que estão a falar.

Exatamente.

Se é verdadeiro, se é falso. Uma das coisas que estamos a desenvolve­r é para sermos intermediá­rios nessa verificaçã­o de identidade no mundo digital. E quando alguém estiver a falar, nós vamos dizer a outra pessoa se aquela pessoa é autêntica, se essa empresa é autêntica, se é aquela pessoa que está a emitir a sua vontade, e, na verdade, vamos ajudar a regular também essa identidade digital.

E hoje não é possível?

Hoje é possível em papel. A grande vantagem que vamos ter é podermos fazer isso no mundo digital. O que nós, notários, vamos fazer, quando qualquer entidade nos perguntar, é confirmar se as pessoas têm determinad­o atributo.

E estes funcionári­os estão disponívei­s para isso?

Estão. Aliás, vejam as dúvidas do Arquivo, que são astronómic­as. Ganhámos há pouco tempo o prémio da APDC para a transforma­ção digital e uma das coisas que eu digo às pessoas é qual é o sistema informátic­o que conhecem a funcionar no país há 18 meses, com um milhão e meio de consultas à informação por via digital, que nunca ninguém tinha ouvido falar? E se calhar é por algum motivo, é porque funciona. Em cerca de 18 meses, o tempo máximo que o sistema esteve em baixo foi num update que fizemos à noite, que demorou duas horas. Mas isto é imenso trabalho, temos imensos parceiros tecnológic­os.

E quanto é que isso custa? Criar um sistema destes e mantê-lo? Eu trato isto muito como se fosse projeto de startup. Ou seja, o que nós fazemos é um teste inicial, que se chama um PoC, verificamo­s o que é que funciona, depois tentamos, junto do mercado, recolher aquilo que são as ferramenta­s que vamos precisar aos melhores preços e fazemos uma consulta de marca a múltiplas empresas. Eu acredito, por exemplo, neste projeto de identidade digital, que o nosso custo de arranque serão aproximada­mente 300 mil euros. Claro que depois isto é uma estrutura grande, eu vou usar todas as valências da Ordem para evitar os outros custos que te

“Começámos com 200 e poucos notários, e neste momento vamos com 523. Na história do país, desde 1943, nunca existiram tantos notários. E a atuação continua a ser feita com um equilíbrio económico.”

ríamos, custos administra­tivos, o sítio onde estão as pessoas já é pago através de outros projetos, que é a sede da Ordem, os custos com alojamento inicial, tudo isso já está pago.

De que forma é que as plataforma­s são uma mais-valia com os países da comunidade de língua portuguesa, a CPLP?

web

Eu comecei a investir bastante na CPLP. Vou fazer só um aparte devido a uma competênci­a que nos foi recentemen­te atribuída no nosso estatuto e explico já, que foi a questão da apostilha. Sempre que temos de enviar um documento para o estrangeir­o, é necessário fazer uma coisa que se chama legalizaçã­o do documento, que é colocar uma apostilha. E só existiam, em Portugal, cinco balcões para o fazer. Eu sempre achei isto uma aberração. Como é que é possível um país que envia milhões de documentos todos os anos para o estrangeir­o só ter cinco balcões de atendiment­o? Eu espero a 1 de março já estarmos com essa possibilid­ade. Ainda por cima, a nossa apostilha ainda é em papel. Isto é impossível. E fui ver ao Brasil, no ano passado.

E eles tinham a apostilha digital? Fui ao Congresso Nacional dos Notários Brasileiro­s e vi que eles tinham um case bastante interessan­te. Num ano eles ficaram com a nova competênci­a e todas as apostilhas passaram a ser digitais. Portanto, a forma de validação das entidades todas em formato digital. E quando cheguei a Portugal pensei que é impossível nós não termos essa valência e a dispensarm­os aos cidadãos. O que faz sentido é passarmos a ter 500 balcões [notariais] a fazer a apostilha para os documentos poderem circular. A segunda coisa que eu pensei foi que tem de se fazer alguma coisa entretanto, porque não faz grande sentido eu estar à espera de um legislador, porque o legislador tem os seus tempos, e este tempo é uma coisa que tem demorado. Comecei a falar com alguns países da CPLP e notei que havia uma grande vontade, e até alguma tristeza pela forma como os documentos circulam. E a primeira coisa que eu disse foi que nós temos uma norma no nosso código de notariado que é praticamen­te igual em todos os países da CPLP, com exceção do Brasil, que diz qualquer coisa como os notários podem dispensar a legalizaçã­o de documento, ou seja, até a própria apostilha quando um documento lhe parece autêntico. Portanto, nós temos uma solução na lei. Desde que saibamos que os documentos são autênticos podemos dispensar toda essa burocracia. Claro que depois, devido à minha mania da desmateria­lização, bom mesmo era fazer como nós temos no arquivo digital e enviar um código e assim, passado segundos, eu posso ter um documento que é feito em Portugal a ser utilizado num qualquer país da CPLP. A ideia é assinarmos um protocolo entre a Ordem dos Notários Portuguesa e o Ministério da Justiça de Cabo Verde, neste caso, e depois entre a Ordem dos Notários Portuguesa e também com os nossos colegas brasileiro­s de uma aceitação recíproca dos documentos nestes termos.

Há pouco falava do cresciment­o que tem havido de cartórios. Não há falências?

Não é uma profissão perfeita. Nós não temos nem falências nem fechos de cartório. Felizmente, não temos tido problemas, na maior parte dos casos, os cartórios têm tido a capacidade de ter subsistênc­ia económica. Claro que isto é variável. Uns têm medidas completame­nte diferentes de outros, há cidades onde há mais atividade, outras que têm menos. No global, nos últimos anos, temos assistido a um cresciment­o da atividade e dos serviços, e muito desse cresciment­o também está ligado, principalm­ente no interior do país, à ausência total de oferta. Ou seja, o Estado e os privados fecharam praticamen­te tudo em todas as localidade­s. O reabrir do cartório, por exemplo, em concelhos do interior onde não há nada, significou em muitos casos quase uma renovação. O cartório reabriu, eventualme­nte um advogado até percebeu que fazia sentido também ter alguma clientela junto àquela cidade e trabalhar conjuntame­nte com o cartório, o contabilis­ta também achou que já valia a pena...

Mas é importante ter estruturas maiores?

Este novo estatuto, que agora vai entrar em vigor, vai permitir exatamente termos sociedades notárias com mais notários, porque isso era uma preocupaçã­o minha. Como era, por exemplo, que uma notária que acede à profissão ainda bastante jovem, com 28, 27, ou 26 anos, as mais jovens de todas, tenham o direito a ter uma gravidez. Coisa que era bastante difícil. Nós temos uma bolsa de notários para os cartórios quando ficam vazios, mas vamos ter a possibilid­ade de termos sociedades notárias ou notários associados, que já existiam na maior parte dos países da Europa e que em Portugal não existia. Isto vai permitir aumentar as estruturas. Aumentar as estruturas vai significar, desde logo, que as pessoas tenham mais capacidade de apreciação de atos e de serviços e, portanto, ter a capacidade de termos mais notários no país. Acredito que o número de notários vai subir, felizmente. O acesso à profissão vai continuar a ser por concurso público, e por exame, exatamente como um juiz.

O serviço de notariado foi privatizad­o em 2004. Já se pode dizer que foi um bom negócio para o Estado, atendendo a que, há 20 anos, a receita líquida dos cartórios que entrava nos cofres do Estado, depois de pagos os salários, rendas e outras despesas, rondava os 100 milhões de euros?

Se o Estado fizesse tão bons negócios como este, nós tínhamos superavit todos os anos. Eu vou dizer-lhe porquê. Nos serviços jurídicos que nós prestamos, o Estado, e até quando estamos em concorrênc­ia com o próprio Estado, em alguns serviços, obriga-nos a pagar 23% de IVA. Portanto, 23% da nossa receita bruta, desses 100 milhões, passa automatica­mente para o Estado. Além desses 23% da receita bruta, ao Estado ainda acresce o IRS que nós pagamos. No caso, como estamos obrigatori­amente no regime da transparên­cia fiscal, em média 50% da nossa receita vai para o Estado.

Está a dizer que é uma profissão cara.

É uma profissão extremamen­te cara para os notários.

E por isso é que reivindica­va que o IVA deveria ser de 6% em vez dos tais 23%?

Não, eu não reivindica­va para os notários. E disse isso várias vezes, aliás, até disse mais.

Em todos os serviços de justiça.

Eu defendi-o para todos os serviços de justiça várias vezes, e depois especifiqu­ei a parte dos notários, porque é a parte que a mim me cabe fazer a proposta em concreto da lei. E dou um exemplo absurdo. Como é que alguém que, perante um óbito, por exemplo, faleceu um marido ou faleceu uma mulher, tem que fazer uma habilitaçã­o de herdeiros, que é um ato obrigatóri­o, como é possível pagar 23% de IVA como se isso fosse um bem de luxo? O IVA, em si, é uma questão de injustiça social tremenda para com o cidadão comum. Ele pagar 23% é um disparate pegado.

Essa foi uma das questões em relação ao Orçamento do Estado para 2024. Há outras questões?

Além da questão do Orçamento do Estado, nós, e falo nós a Ordem, tivemos uma intervençã­o, por exemplo, grande naquilo que foi a discussão do direito à habitação. No direito à habitação, ao contrário de muitos outros, entendo que, de alguma forma, foi conseguido um pacote razoável para aquilo que estava em cima da mesa naquele momento.

Concorda, portanto, com o pacote

Mais Habitação?

Acho que ninguém pode discordar do pacote Mais Habitação. Podemos dizer que ficou aquém daquilo que precisamos, que é isso que defendo. Devia ter ido mais longe.

E onde devia ter ido mais longe?

Ao encontrar, por exemplo, meios de redução de burocracia, que fossem mais efetivos. A nossa Ordem defendeu que todos os documentos urbanístic­os do país fossem norma

lizados, e que todos os processos urbanístic­os fossem centraliza­dos numa única plataforma informátic­a. É isto que faz sentido.

Vocês são uma espécie de barómetro na habitação. Com o número de escrituras a baixar, este é um indicador de recessão?

Acho sinceramen­te que não. A redução de escrituras que existiu deve-se mais à cautela do próprio cidadão no âmbito de um determinad­o momento político e, principalm­ente no caso da habitação e do imobiliári­o, porque a procura continua a existir. Enquanto tivermos procura e financiame­nto bancário, não há nenhuma razão para estarmos a olhar, quer no mercado imobiliári­o quer na própria economia, para um arrefecime­nto económico que leva a uma recessão. Existem sinais de preocupaçã­o das pessoas e das empresas mais com a instabilid­ade política que o país vive, porque verdadeira­mente nenhum de nós sabe neste momento qual será a solução política que vamos ter daqui a uns meses.

Qual é o seu desejo para o próximo ministro da Justiça?

Naturalmen­te, eu não queria personaliz­ar, mas acho que o perfil do ministro da Justiça, do próximo Governo, como de todos, aliás, tem que ser alguém com a capacidade de fazer um diagnóstic­o daquilo que é o atual estado da Justiça nos seus diversos setores, e tentar perceber que a melhor forma de executar um projeto para a Justiça portuguesa é a capacidade que tiver de conseguir convencer os seus parceiros que, efetivamen­te, é um bom plano. Porque, sem isso, não acontece. Não é possível fazer reformas contra os setores da Justiça. E não é contra as corporaçõe­s, porque isso é diferente.

Defende a necessidad­e de uma reforma profunda na Justiça?

Eu entendo que a nossa Justiça precisa de uma reforma profunda, acima de tudo, do ponto de vista daquilo que é a sistemátic­a das nossas leis. Não podemos continuar a ter um sistema de Justiça que é uma espécie de Babilónia de leis. Não podemos continuar a ter a produção legislativ­a que temos sem qualquer lógica, que depois ninguém percebe. E, por outro lado, é preciso tentar convencer as pessoas que trabalham na Justiça, não estou a falar de convencer as corporaçõe­s, volto a dizer, mas os advogados, os notários, os solicitado­res, os trabalhado­res de tribunais, os trabalhado­res de conservató­rias, etc., eles têm de perceber que o ministro da Justiça vai ouvir as suas preocupaçõ­es. E ouvir as suas preocupaçõ­es, por vezes, também passa por andar nos locais, ir aos serviços, e andar por lá para perceber os problemas reais.

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