Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Farfetch. Como se perde um unicórnio dois anos depois do auge

A empresa liderada por José Neves foi sempre um exemplo de inovação e perseveran­ça, que atingiu o pico de valorizaçã­o no início de 2021. Começa 2024 a ser liquidada e retirada de bolsa.

- —ANA RITA GUERRA geral@dinheirovi­vo.pt

Era a “Apple portuguesa”. A “Amazon da moda”. Uma referência do mercado de luxo online. A Farfetch foi o primeiro unicórnio criado por um empreended­or nacional, José Neves, quando atingiu uma avaliação superior a mil milhões de dólares sendo uma empresa privada. Estava-se em 2015 e a startup tinha sete anos de operação, depois de ter sido fundada no auge da crise de 2008 – um mês depois do colapso da Lehman Brothers.

A ideia surgira ao CEO no ano anterior, quando estava na Semana da Moda de Paris a promover uma marca de sapatos e se apercebeu que não havia muitas opções para adquirir peças de luxo online. Neves viu que havia boutiques interessad­as no comércio eletrónico, mas as plataforma­s online não estavam viradas para o luxo. Quando regressou a Portugal, foi para a mesa de desenho com um grupo de engenheiro­s para criar a plataforma Farfetch.

A aposta resultou. A Farfetch abriu com produtos de 25 boutiques disponívei­s em cinco países, apesar das dificuldad­es em levantar financiame­nto por causa da crise. Esse entrave foi desbloquea­do em 2010, quando já tinha escritório nos Estados Unidos e contava com a oferta de 64 boutiques: fechou uma ronda de financiame­nto Série A de 4,5 milhões de euros vinda do fundo europeu Advent Venture Partners. Os anos seguintes foram de rápido cresciment­o e um percurso tão notável que foi alvo de uma tese de mestrado no ISCTE, da autoria de Vasco Silva Cordeiro Constantin­o Rendas, onde é analisada a caminhada até à dispersão na Bolsa de Nova Iorque, em 2018.

Farfetch foi uma história de sucesso por mais de uma década. A derrocada aconteceu em pouco tempo e só não levou à insolvênci­a porque o grupo de e-commerce sul-coreano Coupang lhe saiu ao caminho, oferecendo uma injeção imediata de 500 milhões de dólares e a aquisição das operações.

Como se perde um unicórnio

Em 2021, catorze anos depois de ter a ideia para a Farfetch em Paris, José Neves foi um dos convidados do New York Times numa sessão sobre o Futuro da Moda, a propósito da Semana da Moda de Nova Iorque. Lá estavam também a diretora de conteúdos da Condé Nast, Anna Wintour, o diretor criativo de moda feminina na Louis Vuitton, Nicolas Ghesquière, e a atriz Tracee Ellis Ross.

“O futuro da moda? Para ser honesto, não sei”, disse José Neves nesse evento. “É uma das coisas incríveis da moda. É tão imprevisív­el. E isso faz absolutame­nte parte do mistério, parte do fascínio desta indústria.”

As suas palavras acabariam por fazer mais sentido que nunca nos últimos meses, quando se tornou notório um abrandamen­to do cresciment­o da moda de luxo, após um boom na pandemia.

O analista Francisco Jerónimo, vice-presidente associado da divisão de dispositiv­os na IDC EMEA, não tem dados concretos sobre o que aconteceu na Farfetch. Mas refere um efeito no mercado que está a ter consequênc­ias.

“Há muitas empresas que ainda se estão a reajustar a um mundo pós-pandemia”, disse ao Dinheiro Vivo. “A queda da procura era esperada mas ninguém esperava a guerra e os efeitos económicos que daí resultaram”, salientou. “Formou-se uma verdadeira tempestade que ainda está para durar.”

A Farfetch, tal como várias outras empresas com negócios online, fez fortes investimen­tos no seguimento do boom pandémico, não só em tecnologia e infraestru­turas, mas também em aquisições. Em 2021 comprou a Luxclusif, uma plataforma de revendas de artigos de luxo criada por Rui Rapazote e Guilherme Faria. Foi o ano em que atingiu o seu pico, em fevereiro, chegando a valer 23 mil milhões de dólares.

No início de 2022, comprou a retalhista de beleza norte-ameriA cana Violet Grey e por altura do verão acordou a aquisição de 47,5% da Yoox Net-a-Porter ao grupo Richemont.

Mas os custos elevados da sua estratégia de cresciment­o, para assegurar ligações às casas de luxo mais cobiçadas, começaram a preocupar os investidor­es. Em dezembro do ano passado, as ações afundaram 25% quando revelou que esses custos seriam de 170 milhões de dólares.

Várias empresas fizeram fortes investimen­tos durante a pandemia, numa altura em que a procura online explodia e havia uma ideia de que o “novo normal” não recuaria.

No entanto, como explicou Francisco Jerónimo, as vendas em lojas físicas recuperara­m fortemente e os efeitos da inflação e do custo de vida tiveram um impacto no consumo.

“Apesar de o consumo de luxo estar mais imune à queda do poder de compra, a realidade é a maioria das pessoas teve que retrair-se nas despesas”, salienta. Cerca de 40% do mercado global do luxo depende dos compradore­s aspiracion­ais e houve aqui uma travagem devido à inflação e receios de uma recessão.

Isso explica que os analistas prevejam uma correção do setor em 2024. Na semana passada, a analista Chiara Battistini, do JP. Morgan, escreveu uma nota a recomendar que os investidor­es se mantenham à margem de ações de casas de luxo europeias e cortou o rating da LVMH, casa-mãe da Louis Vuitton e Christian Dior, para neutro.

Se a situação económica teve impacto no negócio da Farfetch e o efeito da dívida resultante das aquisições se tornou demasiado alto, a deterioraç­ão era inevitável. A braços com 1,6 mil milhões de dólares em dívida que teria de pagar entre 2027 e 2030 e prejuízos de 281 milhões no segundo trimestre, as contas correntes começaram a ficar em causa. A Moody’s meteu os títulos da empresa no lixo, cortando o rating para Caa2, e o presidente do grupo Alibaba, J. Michael Evans, demitiu-se do conselho de administra­ção no início de dezembro. Sem opções, a empresa de José Neves seguiu para a liquidação, saída de bolsa e venda dos ativos à Coupang, em troca de um empréstimo de 500 milhões de dólares.

Contactada pelo Dinheiro Vivo, a Farfetch optou por não comentar, remetendo para o comunicado da venda ao grupo Coupang. É o fim da linha para o primeiro unicórnio com ADN português – o negócio continuará sob outra liderança e talvez outro formato.

 ?? FOTO: PEDRO GRANADEIRO/GI ?? José Neves fundou a Farfetch em 2008 no auge da crise financeira.
FOTO: PEDRO GRANADEIRO/GI José Neves fundou a Farfetch em 2008 no auge da crise financeira.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal